Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 994.09.231000-7 (187.456.0/6-00)

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

Objeto: Lei nº 7.044, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito Municipal, da Lei nº 7.044, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí, que exige do motociclista remoção do capacete nos locais que especifica. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que implica em ato de gestão administrativa. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º;  47, II e XIV; 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 7.044, de 28 de abril de 2008, que exige do motociclista remoção do capacete nos locais que especifica.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei não teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, à falta de grave prejuízo decorrente da demora (fls. 18).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 25/26. Afirmou que a lei questionada contou com parecer pela ilegalidade e inconstitucionalidade por parte da Consultoria Jurídica da Câmara Municipal, e parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 74/76).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes (cf. Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675).

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República (cf. Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641), conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

Veja-se o teor da Lei nº 7.044, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí:

Art. 1º. O motociclista removerá o capacete para:

I - ingressar em qualquer estabelecimento comercial, instituição financeira e repartição pública;

II - receber atendimento em postos de combustíveis e estacionamentos de veículos.

§ 1º. O disposto neste artigo aplicar-se-á ao passageiro da motocicleta.

§ 2º. Será afixada placa nos estabelecimentos com os seguintes dizeres:

“MOTOCICLISTA, NESTE LOCAL REMOVA O CAPACETE”

A legislação impugnada, de fato, viola o artigo 144 da Constituição de São Paulo, que remete ao artigo 30 da Constituição Federal. Segundo este, os Municípios só poderão legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I).

Não é o que se vê na Lei nº. 7.044, de 28 de abril de 2008, que avançou em matéria estranha à sua competência.  Isto porque, disciplinou matéria específica do Código de Trânsito Brasileiro. É que a Constituição Federal, no artigo 22, inc. XI, restringe à União a competência para legislar sobre “trânsito e transporte”.

Vê-se que a lei municipal não se restringe a suplementar a legislação federal.

Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Especificamente sobre legislação em matéria de trânsito, observa Hely Lopes Meirelles:

“De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). (...) Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade” (Direito municipal brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2000, pp. 417 e 419).

Diógenes Gasparini também comenta:

 “No que respeita à competência legislativa do Município, em matéria de trânsito, podemos afirmar, seguramente, não se tratar de matéria de interesse local, haja vista ter sido reservada expressamente e de forma privativa, à União, consoante dispõe o art. 22, inc. XI, da Constituição da República. (...) Com efeito, nas responsabilidades legislativas privativas da União, só se admite, excepcionalmente, a atuação dos Estados e Municípios, mediante lei complementar e, mesmo assim, sobre questões específicas, conforme faculta o parágrafo único, do art. 22, do Estatuto Supremo” (Revista de Direito Administrativo, nº. 212, abril/junho, 1998, pp. 175-194).

Ademais, a Lei n. 7.044/2008 é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional, como será demonstrado a seguir.

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Em que pese a relevante intenção do parlamentar, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.044, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí, que exige do motociclista remoção do capacete nos locais que especifica.

São Paulo, 05 de julho de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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