Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0003302-23.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: Lei nº 4.466, de 10 de maio de 2011, do Município de Suzano

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 4.466, de 10 de maio de 2011, do Município de Suzano. Instituição do "Vale Cultura.  Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por objeto a Lei nº 4.466, de 10 de maio de 2011, daquele Município, que "Institui o Vale Cultura, e dá outras providências".

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a administração pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 25/26).

O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações .

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 38/40).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Suzano assim dispõe:

Art. 1º.           Fica instituído, no âmbito do Município, o benefício cultural denominado Vale Cultura.

 Art. 2º.     O encargo decorrente da concessão do Vale Cultura será suportado pelos contribuintes do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, permissionários de bancas de jornais e pelos órgãos da Administração Direta do Executivo Municipal.

 § 1º.    A receita proveniente da contribuição do ISSQN dar-se-á através de incentivo fiscal concedido ao contribuinte do imposto, que terá deduzido do imposto recolhido um percentual a ser destinado ao custeio do Vale Cultura.

§ 2º.    Os permissionários das bancas de jornais e revistas destinarão um percentual para o custeio do Vale Cultura, incidente sobre a importância auferida pelos mesmos junto às empresas de mídia exterior que exploram o espaço das bancas de jornais destinados à propaganda publicitária.

§ 3º.    Os permissionários das bancas de jornais e revistas que sublocarem-nas a terceiros destinarão 50% (cinqüenta por cento) da importância recebida dos locadores, à titulo de aluguel, sem prejuízo das demais penalidades a serem impostas pelo Executivo pelo uso indevido da permissão de uso.

§ 4º.    O percentual mencionado nos §§ 1° e 2° será estabelecido pelo Executivo, e, no caso do § 2°, o percentual não poderá ser inferior a 30% (trinta por cento) da importância paga mensalmente pelo uso do espaço publicitário.

Art. 3º.     São beneficiários do Vale Cultura:

I -      os estudantes das redes municipal e particular de ensino;
II -     os servidores públicos municipais;

III -    os empregados de empresas favorecidas com o incentivo fiscal concedido pela Prefeitura Municipal;

IV -    outros.

Art. 4º.     O Vale Cultura será confeccionado pelo Executivo, que estabelecerá as condições para a sua distribuição aos beneficiários.

Art. 5º.     O Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias.

Art. 6º.     Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa de incentivo à cultura, mediante distribuição de benefício denominado “Vale Cultura”, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.466, de 10 de maio de 2011, do Município de Suzano.

São Paulo, 3 de maio de 2012.

 

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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