Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0003311-82.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: inconstitucionalidade da Lei nº 4.517, de 04 de outubro de 2011, do Município de Suzano

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 4.517/11, do Município de Suzano, que “Determina que as Repartições Públicas, no âmbito do Município de Suzano, disponibilizem cadeiras de rodas e dá outras providências”. Projeto de iniciativa parlamentar. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que dispõe sobre organização e funcionamento da Administração, gerando ônus a esta. Violação do princípio da separação dos poderes.  Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, II e XIV e 144, todos da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Suzano impugnando a Lei nº 4.517, de 04 de outubro de 2011 que “determina que as Repartições Públicas, no âmbito do Município de Suzano, disponibilizem cadeiras de rodas, e dá outras providências”, sob a alegação de violação aos arts. 5º, 25, 47, II e 144 da Constituição Estadual (fls. 02/11).

Concedida liminar (fls. 22/23), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 35/36), tendo transcorrido in albis o prazo para a Câmara Municipal apresentar informações (fls.37).

É o relatório.

A ação é procedente.

A lei impugnada, concebida pelo Vereador Emerson Taboada de Faria (fls. 14), definiu que as repartições públicas, no âmbito do Município de Suzano, terão que disponibilizar para seus usuários cadeiras de rodas para pessoas com dificuldade de locomoção. Ainda, dentre outras, prevê que as repartições públicas deverão adequar suas instalações visando facilitar o trânsito de pessoas portadoras de deficiências motoras que necessitem utilizar cadeiras de rodas (art. 4º).

Destarte, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram a Câmara Municipal, tem-se que a lei impugnada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º; 47, II e XIV e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25.- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a organização e funcionamento das repartições públicas, como no caso em análise.

Por intermédio da lei em questão, a Câmara determinou a disponibilização de cadeiras de rodas, criando obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o deslocamento do deficiente físico ou de pessoa que estiver temporariamente impossibilitada de caminhar, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma diz respeito a atos inerentes à função executiva, como afirmado na inicial.

Com efeito, a organização e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência da Administração.

Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para organização e funcionamento de serviços municipais é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “e”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de organizar o serviço público em questão e fixar as regras para sua operacionalização. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal de Suzano, de iniciativa parlamentar, autorizando o Poder Executivo Municipal a criar salas de leitura nas escolas da rede municipal. Afronta ao princípio da separação dos poderes. Invasão de competência exclusiva do Executivo. Violação aos artigos 5o, 25, 47 II e XIV e 144 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei n°4.405/2010 do Município de Suzano” (Adin n. 0057183-46.2011.8.26.0000, Rel. Dês. Ruy Coppola, de 14/09/2011)

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com a disposição do artigo 25 da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que as obrigações de disponibilizar cadeiras de rodas, bem como de adequação das dependências públicas para utilização das cadeiras, geram despesa para o Município que não estão cobertas pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com referidas regras constitucionais.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.517/11, do município de Suzano, por violação aos arts. 5º; 25, caput; 47, II e XIV, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

        São Paulo, 03 de maio de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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