Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0004720-93.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Itapeva

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, do § 4º do art. 143 da Lei Orgânica, do Município de Itapeva. Proibição ao Poder Executivo de “repassar aos que o sucederem mais do que 20% (vinte por cento) do valor total das operações de crédito contraídas durante o seu mandato”. Não acolhimento da alegação de que a disposição legal implica gestão administrativa. Parecer pela improcedência.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Itapeva, tendo por objeto o § 4º do art. 143 da Lei Orgânica daquele Município, que proíbe o Executivo de “repassar aos que o sucederem mais do que 20% (vinte por cento) do valor total das operações de crédito contraídas durante o seu mandato”.

Segundo o autor, o dispositivo legal em análise invade a esfera da União para legislar sobre as operações de crédito, além de interferir na “competência do Prefeito de gerir e administrar o Município, em afronta ao princípio da separação dos poderes”.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 88/90).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 84/86).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Assim está redigido o § 4º do art. 143 da Lei Orgânica de Itapeva:

“O Executivo não poderá repassar aos que o sucederem mais do que 20% (vinte por cento) do valor total das operações de crédito contraídas durante o seu mandato.”

Observe-se, por primeiro, que o impugnado dispositivo encontra-se no capítulo “DO ORÇAMENTO”, tratando-se, pois, de vedação imposta, quando da aprovação de Lei Orçamentária, de transferência de mais de 20% do valor total das operações de crédito contraídas no curso de uma gestão administrativa para a subsequente.

Com essa premissa, entendo que a norma em análise não se afigura ilegítima.

Ocorre que, como visto, “a norma impugnada não se refere à contratação de operações de crédito”, como afirmado na inicial, mas à limitação de transferência de dívida de uma gestão administrativa para outra. Ou seja, ela não limita o Chefe do Poder Executivo a realizar contratação de operações de crédito, mas impede a transferência da dívida contraída por esta espécie de receita, durante o seu mandato, ao sucessor, em percentual acima de 20%.

A providência é salutar, pois confere maior segurança às economias do Município e ao uso de seus recursos, protegendo-o contra endividamentos que não possa suportar.

É verdade que, com a norma, a discricionariedade do Prefeito foi restringida, pois, agora, deverá observar o limite de repasse de endividamento assumido durante sua gestão para a subsequente.

Essa é, todavia, a consequência natural da deflagração do processo legislativo e da submissão do Alcaide à vontade popular que se expressa pelo parlamento, sem que isso implique efetivamente a usurpação de suas funções pela Câmara Municipal, o que afasta o argumento de afronta ao princípio da separação dos poderes.

Lembre-se, por oportuno, que referido dispositivo legal trata do orçamento do Município, e, consequentemente, a competência legislativa não é exclusiva da União, conforme se pode ver pela análise do art. 22 em confronto com o art. 24, ambos da Constituição Federal.

De outro giro, cabível ao Município a competência legislativa posto que presente o interesse local, previsto no art. 30, I, da CF.

         Nada fácil se mostra conceituar “interesse local”.  Hely Lopes Meirelles esclarece que O que define e caracteriza o “interesse local”, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União.” Mais adiante, o mencionado autor citando Sampaio Dória, coloca que “O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que diferencia é a predominância, e não a exclusividade”. Assim, “...tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e à União.” (Direito Municipal Brasileiro”, 6ª edição, Malheiros Editores, pág. 98 e 99).  Não é outro, ainda, o entendimento de Fernanda Dias Menezes, para quem “é inegável que mesmo atividades e serviços tradicionalmente desempenhados pelos municípios, como transporte coletivo, polícia das edificações, fiscalização das condições de higiene de restaurantes e similares, coletas de lixo, ordenação do uso do solo urbano, etc., dizem respeito secundariamente com o interesse estadual e nacional” (in “Competências na Constituição de 1988, Atlas, 1991).

No caso em apreço, a limitação imposta refere-se diretamente à saúde financeira do Município, estando, pois, apto a legislar a tal respeito, sem ofensa ao princípio da autonomia dos entes federativos.

Assim resta afastada a hipótese de inconstitucionalidade da restrição imposta pela norma em questão.

Não é tudo, porém.

Pela leitura do texto impugnado, não se nota, de pronto, contrariedade à norma constitucional Estadual.  Eventualmente haveria contraste com a Constituição ou Legislação Federal (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Nesse último caso, inviável a ativação da jurisdição constitucional, pois o confronto da espécie normativa objeto de controle só pode ser feito com a Constituição Estadual, nunca com a legislação ordinária. No controle de constitucionalidade, a harmonia normativa que se exige é com o texto fundamental, tanto que é ele o objeto paradigma. Portanto, eventual dissonância com a legislação infraconstitucional não enseja crise de constitucionalidade, mas sim crise de legalidade.

Os parâmetros de controle da validade jurídico-constitucional das leis, é cediço, devem estar assentados no próprio texto constitucional. O processo objetivo não se presta ao controle de inconstitucionalidades indiretas, mas apenas das afrontas diretas e imediatas do texto da Constituição.

Nesse sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Pretório Excelso:

"É incabível a ação direta de inconstitucionalidade quando destinada a examinar atos normativos de natureza secundária que não regulem diretamente dispositivos constitucionais, mas sim normas legais. Violação indireta que não autoriza a aferição abstrata de conformação constitucional." (ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04).

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MP 1911-9/99. NORMA DE NATUREZA SECUNDÁRIA. VIOLAÇÃO INDIRETA. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. 1. É incabível a ação direta de inconstitucionalidade quando destinada a examinar ato normativo de natureza secundária que não regule diretamente dispositivos constitucionais, mas sim normas legais. Violação indireta que não autoriza a aferição abstrata de conformação constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.  (ADI 2065 / DF – DISTRITO FEDERAL, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊ., Julgamento:  17/02/2000, Tribunal Pleno, DJ 04-06-2004 PP-00028, EMENT VOL-02154-01, PP-00114)”.

No mesmo: ADI-MC 1347/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241; ADI 2626/DF – DISTRITO FEDERAL, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 18/04/2004.  Tribunal Pleno. DJ 05-03-2004, PP-00013, EMENT VOL-02142-03, PP-00354.

Desse entendimento não destoa a jurisprudência da Corte Paulista:

“As ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

Diga-se, por outro lado, que nem mesmo atrito há entre o questionado dispositivo e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Pelo contrário, há afinidade entre os objetivos de ambos que pode ser notada pela leitura do art. 42 da LRF, que também prevê restrição de igual natureza.

Quanto à eventual afronta à Constituição Federal, já se assentou o entendimento de que não cabe, ao Tribunal de Justiça do Estado, realizar o controle de constitucionalidade adotando como parâmetro, dispositivos da Constituição da República, sob pena de usurpação da competência do próprio Supremo Tribunal Federal.

Por essa razão foi declarada a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo, pelo C. STF, conforme ementa transcrita a seguir:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ART. 74, XI. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE LEI OU ATO NORMATIVO MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROCEDÊNCIA. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, antes e depois de 1988, no sentido de que não cabe a tribunais de justiça estaduais exercer o controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos municipais em face da Constituição federal. Precedentes. Inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido julgado procedente.” (STF, ADI 347/SP, rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, j.  20/09/2006).

Diante do exposto, opino pela improcedência desta ação direta.

São Paulo, 20 de junho de 2012.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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