Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 0007761-68.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Amparo

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.646, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Amparo

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 3.646, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Amparo, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre consulta popular para aplicação dos recursos advindos do IPTU”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 144, 174, §§ 2º e 9º e 176 da Constituição Paulista).

3)      Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Amparo, tendo como alvo a Lei Municipal nº 3.646, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Amparo, de iniciativa parlamentar, que, conforme a respectiva rubrica, “dispõe sobre consulta popular para aplicação dos recursos advindos do IPTU”.

 

 

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município.

 Aponta para a violação do art. 5º, 24, § 2º, 2, 144 e 174, §§ 2º e 9º e 176 da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi deferido (fls. 27/28).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que a matéria é de interesse exclusivamente local (fls. 38/41).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 190/192).

É o relato do essencial.

A Lei n. 3.646, de 13 de dezembro de 2011, que “dispõe sobre consulta popular para aplicação dos recursos advindos do IPTU”, apresenta a seguinte redação:

 

Art. 1º - A Prefeitura Municipal de Amparo poderá durante o ano corrente realizar a consulta popular para aplicação dos recursos arrecadados do IPTU.

Art. 2º - A Prefeitura caso entenda pertinente, poderá colocar no próprio site da Municipalidade, o referido Via Internet, objetivando debater a aplicação do IPTU.

Art. 3º - O Artigo anterior não determinará qualquer obrigação a Municipalidade, sendo optativa a consulta ou a divulgação no site da municipalidade.

Art. 4º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

A lei local instituiu no Município técnica de orçamento participativo, o que merece encômios em razão da ênfase da participação popular na gestão política dos negócios públicos e cujo fundamento se encontra nos arts. 29, XII, e 30, I e VIII, da Constituição Federal, como pondera Régis Fernandes de Oliveira (Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 313-314, 349-351). Tal expediente no patamar normativo infraconstitucional tem lastro no art. 4º, III, f, e no art. 44 do Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/01), cuja dimensão é bem aquilatada pela doutrina:

“Em verdade, a lei criou um requisito de validade das diversas leis orçamentárias. Caso não tenha havido audiências públicas e consultas populares, poderão as leis ser questionadas, em sua validade, perante o Judiciário” (Régis Fernandes de Oliveira. Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 397).

 

Todavia, a lei local ostenta vício de inconstitucionalidade na medida em que agride os arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II e XIX, 144 e 174, §§ 2º e 9º, da Constituição do Estado de São Paulo, porque, em síntese, viola o princípio da separação de poderes.

Com efeito, postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois observa a doutrina que:

 

“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

 

Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

 

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 

Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24, § 2º, 2, 47, II).

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

 

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

 

Perfilhando essa orientação centrada, como dito, no princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual determina em matéria orçamentária – igualmente aplicável no âmbito municipal (art. 144, Constituição Estadual) – a iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo do plano plurianual e das leis de diretrizes orçamentárias e de orçamentos anuais.

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa e orçamentária. É o que consta, no plano federal, dos arts. 61, § 1º, II, e, e 165, da Constituição Federal, reproduzidos pelos arts. 24, § 2º, 2, e 174, da Constituição do Estado de São Paulo.

No aspecto administrativo, somente o Chefe do Poder Executivo tem a prerrogativa de ignição do processo legislativo respectivo para dispor sobre a organização administrativa, definindo a criação, a atribuição e a extinção de órgãos da Administração Pública, se não for o caso de fazê-lo por decreto (art. 84, VI, a, Constituição Federal; art. 47, II e XIX, a, Constituição Estadual). Neste sentido, colhe-se da jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (STF, ADI 1.144-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 16-08-2006, v.u., DJ 08-09-2006, p. 33). 

 

No aspecto orçamentário, não por coincidência, o art. 174, da Constituição Bandeirante reproduz o art. 165 da Constituição Brasileira, e Hely Lopes Meirelles complementa sua opinião asseverando a privatividade da iniciativa legislativa na matéria:

 

“A iniciativa e elaboração do projeto de lei orçamentária anual cabem privativamente ao Executivo, que deverá enviá-lo, no prazo legal, ao Legislativo, com todos os requisitos indicados na Constituição da República” (ob. cit., pp. 485-486).

 

Neste sentido, reverbera a jurisprudência:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Inciso V, do § 3º, do art. 120, da Constituição do Estado de Santa Catarina, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 14. Alegação de afronta aos arts. 2º, 61, § 1º, II, alínea b; 165, § 2º; 166, § 3º, I e § 4º; e 167, IV, da Constituição Federal. 3. Competência exclusiva do Poder Executivo iniciar o processo legislativo das matérias pertinentes ao Plano Plurianual, às Diretrizes Orçamentárias e aos Orçamentos Anuais. Precedentes: ADIN 103 e ADIN 550. 4. Relevantes os fundamentos da inicial e conveniente a suspensão da vigência da norma impugnada. 5. Medida liminar deferida, para suspender, até decisão final da ação direta, a vigência do inciso V do § 3º do art. 120, da Constituição do Estado de Santa Catarina, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 10.11.1997” (STF, ADI-MC 1.759-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 12-03-1998, v.u. DJ 06-04-2001, p. 66).

 

Ora, no quadro constitucional vigente não há dúvida que ao Chefe do Poder Executivo é conferida a iniciativa legislativa reservada em matéria orçamentária, abrangendo inclusive a disciplina do processo orçamentário em todas as suas fases.

Embora a participação popular na Administração Pública seja tônica inerente ao princípio da transparência estatal incentivada no Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/01), a sua regulação depende de lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo na medida em que institui mecanismos de compartilhamento de prerrogativas elementares à função administrativa que lhe pertence e, em última análise, de entrega de competências que são do domínio do Poder Executivo e do Poder Legislativo no âmbito municipal.

Ademais, como a disciplina dessa matéria interfere no processo de elaboração e fiscalização orçamentária para além dos contornos estabelecidos nas Constituições Federal e Estadual, tal conclusão só corrobora o argumento da reserva de iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Com efeito, se ao Poder Executivo é conferida iniciativa legislativa reservada no processo legislativo envolvendo a lei de diretrizes orçamentárias e o orçamento anual, e se a lei de diretrizes orçamentárias tem a função de orientação da elaboração da lei orçamentária, soa intuitivo que a lei que regula a participação popular nesse processo deve seguir idêntica iniciativa, sob pena de supressão de prerrogativa constitucional do Poder Executivo. A premissa não é leviana; ela é, por sinal, alicerçada pelo art. 175 da Constituição Estadual ao inscrever limites ao poder de emenda parlamentar ao projeto de lei anual de orçamento.

Neste sentido, cabe obtemperar que se a lei orçamentária anual deve guardar sintonia com a lei de diretrizes orçamentárias, pode-se  concluir que a lei de participação popular nesse domínio deve, por igual, manter essa sintonia, premissa que fornece outra conclusão de sua inconstitucionalidade.

Em síntese, a lei que disciplina o caráter aberto e transparente da formulação, da execução e do controle orçamentários é de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

Análise de Régis Fernandes de Oliveira cifra que “inexiste qualquer impedimento à iniciativa do Executivo” no processo de ampliação da esfera de participação do cidadão nos interesses locais, inferindo-se daí a necessidade de o Poder Executivo deflagrar o competente processo legislativo. Por isso, assinala que, em matéria orçamentária, a iniciativa é do Poder Executivo, insubstituível por qualquer outro órgão ou até mesmo pelo povo (ainda que esse possa ser ouvido a priori ou a posteriori), porquanto “exclui qualquer outro poder de iniciativa” (Curso de Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 338-339, 351, 353-354). Comunga deste entendimento Ricardo Lobo Torres ao enunciar que:

 

“A participação popular no orçamento só parcialmente está prevista na Constituição. Vem sendo regulada por leis ordinárias dos entes da Federação. Surge daí a possibilidade de conflito entre a disciplina constitucional do processo orçamentário e a regulação expedida pelo Estado-membro ou pelo município, máxime no que concerne à separação de poderes. Se vier a ocorrer tal conflito as normas locais sobre a elaboração, a execução e o controle do orçamento não poderão, obviamente, se sobrepor às regras constitucionais” (Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 2ª ed., p. 103).

 

No caso apresentado, a lei local, de iniciativa parlamentar, padece de inconstitucionalidade porque condiciona a aplicação dos recursos arrecadados do IPTU à consulta popular, de maneira a romper com a separação de poderes ao criar órgãos administrativos e cometer funções ao Poder Executivo e ao dispor sobre o processo normativo orçamentário, matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Chefe do Poder Executivo, violando os arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, 174, § 2º, da Constituição Bandeirante, cujos preceitos são aplicáveis aos Municípios (art. 144).

O egrégio Tribunal de Justiça Paulista registra precedentes acerca do tema:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n° 2.326/03 de Ubatuba. Instituição de elaboração e fiscalização orçamentária do Município em lei dispondo sobre o orçamento participativo. Afronta aos artigos 5° e 144, 174 e 176, da Constituição do Estado, por invasão de competência privativa do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 104.857-0/9-00, Órgão Especial, Rel. Des. Olavo Silveira, v.u., 10-03-2004).

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal, de iniciativa de vereador, com rejeição ao veto do Prefeito, que autoriza o Poder Executivo a instituir o orçamento participativo nos processos de elaboração e fiscalização orçamentária do município. Pesem embora os bons propósitos do legislador, a lei em apreço invade o âmbito de atuação reservado ao Chefe do Executivo. Além disso, implica em criação de despesas, sem a necessária previsão de recursos no orçamento municipal. Pedido procedente” (TJSP, ADI 103.638-0/2, Órgão Especial, Rel. Des. Viseu Junior, v.u., 10-03-2004).

 

Merece destaque, ainda, neste debate, a necessidade de disciplina do assunto por lei complementar, nos termos do § 9º, do art. 174, da Constituição Estadual, sendo insuscetível seu regramento por lei ordinária. Fica caracterizado, dessa forma, outro vício de inconstitucionalidade na lei em foco, uma vez que a regra é aplicável aos Municípios (art. 144, Constituição Estadual).

Consoante a doutrina explica:

“Lei complementar é, pois, toda aquela que contempla uma matéria a ela entregue de forma exclusiva e que, em consequência, repele normações heterogêneas, aprovada mediante um quorum próprio de maioria absoluta” (Celso Ribeiro Bastos. Lei Complementar Teoria e Comentários, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, pp. 48-49).

“Leis complementares da Constituição são leis integrativas de normas constitucionais de eficácia limitada, contendo princípio institutivo ou de criação de órgãos, e sujeitas à aprovação pela maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 462).

 

No caso, havia uma reserva de lei complementar impossível de substituição por lei ordinária, à vista da diferença de seus requisitos na produção legislativa e de sua competência objetiva, pois a distinção entre lei complementar e lei ordinária não se resolve pelo princípio da hierarquia das normas, mas, sim, por uma questão de competência ratione materiae, como aponta a doutrina:

 

“Poder-se-ia, então, dizer que a questão é de reserva legal qualificada, na medida em que certas matérias são reservadas pela Constituição à lei complementar, vedada, assim, sua regulamentação por lei ordinária (...) A relação entre lei complementar e lei ordinária não é hierárquica, mas de competência. O que a Constituição designa como de competência da lei complementar, só a ela está reservado; se a lei ordinária interferir, ela não fere a lei complementar, mas a Constituição. A lei ordinária que ofenda uma lei complementar estará vulnerando a própria Constituição, visto que disciplinará interesses que esta determina sejam regulados por ela. Tratar-se-á, então, de conflito de normas, subordinado ao princípio da compatibilidade vertical, entroncando, pois, na norma de maior superioridade hierárquica, que é a que ficou ofendida – a Constituição. Pronunciamo-nos, destarte, pelo controle de constitucionalidade das leis, com todas as suas consequências, quando uma regra jurídica ordinária conflite com uma lei complementar” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 462).

 

Corolário da disciplina de assunto reservado à lei complementar por lei ordinária é a inconstitucionalidade, como já julgado pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis:

 

“tendo-se firmado a jurisprudência desta Corte no sentido de que, quando a Constituição exige lei complementar para disciplinar determinada matéria, essa disciplina só pode ser feita por essa modalidade normativa” (STF, ADI-MC 2.436-PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 30-05-2001, v.u., DJ 09-05-2003, p. 44).

Portanto, a lei local impugnada nesta sede viola frontalmente os arts. 5º, 24, § 2º, 2 47, II, 144, 174, §§ 2º e 9º, da Constituição Estadual, razão pela qual requeiro a procedência da ação para declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 3.646, de 13 de dezembro de 2011, do Município de Amparo, que “dispõe sobre consulta popular para aplicação dos recursos advindos do IPTU”.

São Paulo, 24 de abril de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb