Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0007764-23.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Amparo

Objeto: Lei nº 3.624, de 30 de agosto 2011, do Município de Amparo

 

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que “DISPÕE SOBRE O PROBRAMA CLUBE ESCOLA INSTITUÍDO NO MUNICÍPIO DE AMPARO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. 2) Iniciativa parlamentar. 3) Violação da separação de poderes.  Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47 II e XIV, da Constituição Paulista).  4) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Amparo, tendo por objeto a Lei nº 3.624, de 30 de agosto 2011, do Município de Amparo, que “DISPÕE SOBRE O PROBRAMA CLUBE ESCOLA INSTITUÍDO NO MUNICÍPIO DE AMPARO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, por isso, padece de inconstitucionalidade.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 34/35).

O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 45/46).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:

         “Art. 1º - Esta Lei tem por objetivo perenizar, desde que observado o disposto no art. 167, inciso I, da Constituição Federal, o Programa Clube Escola instituído através do Decreto nº 48.392, de 29 de maio de 2007 com objetivo de oferecer ao munícipe em idade escolar a oportunidade de participar das atividades esportivas, recreativas e de lazer.

         Parágrafo único – O programa oficializado através desta Lei é desenvolvido através de ações específicas de órgãos competentes do Executivo, direcionadas a facilitar a inclusão sócio-educativa, a promoção da saúde e da qualidade de vida dos estudantes da rede regular de ensino, contribuindo para o desenvolvimento local – Índice de Desenvolvimento Humano, para o fomento da prática esportiva, para o aprimoramento da integração entre as diversas faixas etárias, para a descoberta de novos talentos, além de possibilitar a reconstrução dos vínculos familiares e comunitários, com o envolvimento da família nesse processo.

         Art. 2º - O Programa Clube Escola tem como objetivos:

         I – ampliar atividades físicas, esportivas, de lazer e de recreação na cidade de Amparo, especialmente para os alunos da rede pública e seus familiares;

         II – proporcionar o acesso e a inclusão qualificada dos alunos aos equipamentos sociais existentes na cidade de Amparo;

         III – contribuir para o enriquecimento sócio-cultural nas diferentes áreas do conhecimento, proporcionando saúde a todos nossos jovens;

         IV – Desenvolver atividades esportivas em vários bairros, proporcionando até mesmo para a terceira idade;

         V – Desenvolver ou Pré-estabelecer mais áreas nos bairros do município, incluindo a zona rural. Utilizar os clubes esportivos de Amparo para o desenvolvimento do Cube Escola, uma vez que a municipalidade já o vem fazendo, através das parcerias.”

        A lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, ao dispor sobre o “Programa Clube Escola”.

Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.

Note-se que o referido programa de governo já estava implantado através do Decreto nº 48.392, de 29 de maio de 2007, como deveria mesmo ocorrer, e o Poder Legislativo acabou por usurpar atribuições do Poder Executivo, ao legislar sobre tal matéria.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

         E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)

         Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.624, de 30 de agosto 2011, do Município de Amparo.

São Paulo, 3 de maio de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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