Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0011793-19.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: inconstitucionalidade da Lei n. 4.504, de 30 de agosto de 2011, do Município de Suzano

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade Lei n. 4.504, de 30 de agosto de 2011, do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar. Instituição do Programa de Saúde dos Servidores. Violação da separação de poderes. Procedência da ação.  Ato normativo que viola a competência da União para instituir diretrizes sobre transportes e para legislar sobre trânsito e transporte (art. 21, XX e 22, XI, da CR/88). Critério da predominância do interesse em matéria de repartição constitucional de competências. Impossibilidade de edição de ato normativo municipal sobre aspectos que merecem regulamentação uniforme além do território do Município. Ademais, matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar. Procedência da ação.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

 

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito Municipal impugnando Lei n. 4.504, de 30 de agosto de 2011, do Município de Suzano, decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, que “regulamenta o exercício de atividades dos profissionais em entrega de mercadorias de pequenas cargas com uso de motocicleta e motonetas – moto frete”.

         O Presidente da Câmara Municipal de Amparo deixou transcorrer in albis o prazo para prestar informações (fls. 32) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 29/31).

         É o relatório.

         É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

         Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

         Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

         A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

         A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

         Pois, ao instituir serviços administrativos, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo, assunto cuja iniciativa legislativa lhe é reservada.

         Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5°e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

         E como exposto, invade a denominada reserva de Administração, consoante já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

         Se não bastasse, há a inconstitucionalidade decorrente da falta de competência legislativa do município.

É assente na doutrina que a competência legislativa, em nosso sistema constitucional, é definida pelo critério da predominância do interesse.

É a clássica lição de José Afonso da Silva, para quem “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local (...)” (Curso de direito constitucional positivo, 28ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 478).

No caso ora em exame, o legislador municipal, de fato, legislou sobre trânsito e transporte, matéria cuja competência legislativa é privativa da União, nos termos do art. 22, XI, da CF/88, sendo oportuno lembrar, ademais, que também o art. 21, XX, da CF/88 prevê a competência exclusiva da União para instituir diretrizes relacionadas ao transporte urbano.

Com a devida vênia a entendimento diverso, não é apropriada a argumentação no sentido de que, na hipótese, o legislador municipal teria simplesmente regulado uma modalidade de transporte coletivo, com fundamento na competência prevista no art. 30, V, da CF/88, que assegura aos Municípios a possibilidade de “organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

Tal competência municipal deve ser compreendida dentro da perspectiva de predominância de interesse, elemento central na repartição constitucional de competências.

Em outras palavras, é correto concluir que determinada matéria pode, de fato, ser alvo, concomitantemente, de legislação federal e municipal, mas desde que nesta última sejam abordados aspectos essencialmente locais.

No caso em exame, é possível afirmar que estão inseridos na competência privativa do legislador federal para regular a matéria atinente a trânsito e transporte, v.g.: (a) a existência de determinada modalidade de transporte (como o de “moto-táxi”); (b) as condições mínimas de segurança do equipamento a ser utilizado; (c) a configuração básica dos veículos utilizados em tal modalidade; (d) a qualificação específica mínima a ser exigida dos condutores; entre outros.

De outro lado, estaria presente a competência do legislador municipal para, v.g.: (a) regular aspectos essencialmente locais relacionados ao cadastro dos profissionais da referida categoria junto à Municipalidade; (b) tratar da concessão da licença (alvará) municipal para exercício da atividade; (c) padronizar a identificação dos veículos (cores); entre outros.

Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles averba que “o trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal – conforme a natureza e âmbito do assunto a prover. (...) Os meios de circulação e transporte interessam a todo o país, e por isso mesmo a Constituição da República reservou para a União a atribuição privativa de legislar sobre trânsito e transporte (art.22 XI), permitindo que os Estados-membros legislem supletivamente a respeito da matéria, nos termos de lei complementar pertinente. (...) De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art.30 I e V).”(Direito Municipal Brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 444/446, g.n.).

Ora, a confirmar o exposto, basta observar que a União, cumprindo a competência privativa que lhe foi constitucionalmente reservada, editou o Código Brasileiro de Trânsito (Lei nº 9.503/97), fixando expressamente as matérias da alçada do Município (art. 24, com vinte e um incisos). Destas não é viável extrair, nem mesmo indiretamente, a possibilidade de regulamentar, da forma como ocorreu no caso em exame.

         Pelas razões expostas, opino pela procedência da ação.

                   São Paulo, 11 de maio de 2012.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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