Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0012659-27.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Itatiba

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.420, de 18 de novembro de 2011, de Itatiba

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.420, de 18 de novembro de 2011, de Itatiba, que dispõe sobre “a criação de ‘Espaço Histórico dos Bairros’ nas dependências das escolas municipais”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Itatiba, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.420, de 18 de novembro de 2011, de Itatiba, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “a criação do ‘Espaço Histórico dos Bairros’ nas dependências das escolas municipais”.

Sustenta o autor a inconstitucionalidade da lei, visto que: (a) trata-se de matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo; (b) houve ofensa ao princípio da separação de poderes; (c) houve criação de despesa não prevista em orçamento; (d) houve violação do art. 37, VI da Lei Orgânica de Itatiba.

Alega-se, portanto, violação aos seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: artigos 5º, 25, 144, 176, I, além da violação de dispositivo da Lei Orgânica do município de Itatiba.

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo (fls. 16).

Citado o Senhor Procurador-Geral do Estado, declinou da defesa do ato normativo (fls. 48/49).

Foram apresentadas informações pela Câmara Municipal (fls. 22/42).

É o relato do essencial.

A ação só merece conhecimento no tocante ao confronto com as normas da Constituição do Estado, e não com a da Lei Orgânica do Município, uma vez que o controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, por via de ação direta, tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

A Lei Municipal nº 4.420, de 18 de novembro de 2011 de 2011, de Itatiba, fruto de iniciativa parlamentar, que “Cria o ‘Espaço Histórico dos Bairros’, nas dependências das escolas municipais e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica criado o ‘Espaço Histórico dos Bairros’ nas dependências das escolas municipais.

Parágrafo único: O ‘Espaço Histórico dos Bairros’ será vinculado às Secretarias de Educação e de Cultura da Prefeitura do Município de Itatiba e será formado por documentação e outros elementos que constituam a memória da história do bairro.

Art. 2º. O ‘Espaço Histórico dos Bairros’ terá por finalidade:

I.                   Registrar a história dos moradores dos bairros e da região;

II.                 Desenvolver acervo de material que contribua com a memória do bairro;

III.               Efetuar pesquisar sobre mudanças urbanas, socioeconômicas e culturais do bairro;

IV.              Registrar e manter à disposição dos moradores e entidades os registros históricos do bairro e região.

Art. 3º. O Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 60 dias a contar de sua publicação.

Art. 4º. As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º. A lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

É manifesta a violação do princípio da separação de poderes, na hipótese em exame, tendo em vista que a lei analisada interfere diretamente no modo como deve ser administrada a valorização da história e cultura municipais juntamente com a gestão dos estabelecimentos de ensino (arts. 1º e  2º).

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental, ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008; dentre muitos.

Para um exemplo recente desse pacífico entendimento do Col. Órgão Especial confira-se a ementa da decisão proferida na ADI 0283817-95.2011.8.26.0000, rel. des. Kiotsi Chicuta, j. 04 de abril de 2012:

“EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 3.411, de 30 de agosto de 2011, do Município de Ubatuba. Norma que dispõe sobre delimitação da área escolar de segurança como espaço de prioridade do Poder Público Municipal. Projeto de lei de autoria de Vereador. Ocorrência de vício de iniciativa. Lei promulgada pela Câmara de Vereadores após veto do Prefeito. Competência privativa do chefe do Executivo para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, inclusive as que importem indevido aumento de despesa pública sem a indicação dos recursos disponíveis. Inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação, independência e harmonia entre os Poderes. Procedência da ação. É Inconstitucional lei, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre delimitação da área escolar de segurança como espaço de prioridade do Poder Público Municipal, por se tratar de matéria cuja competência exclusiva é do chefe do Poder Executivo, responsável para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, configurando violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.”

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.420, de 18 de novembro de 2011, de Itatiba.

São Paulo, 03 de maio de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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