Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 0027336-62.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Campinas

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 13.584, de 14 de maio de 2.009,  do Município de Campinas

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 13.584, de 14 de maio de 2.009, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a aplicação de multas e recolhimento de veículos em áreas privadas que especifica e dá outras providências”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).

3)      Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Amparo, tendo como alvo a Lei Municipal                nº 13.584, de 14 de maio de 2.009, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre aplicação de multa e recolhimento de veículos em áreas privadas que especifica e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo.

Argumenta, também, competir privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte, nos termos do art. 22, XI, da Constituição Federal.

Aponta para a violação do art. 5º, 25, 37, 47, II, XI, XIV, XVIII,  144, 174 e 176, I, todos da Constituição Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 164/165).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 172/174).

A Câmara Municipal deixou transcorrer in albis o prazo  para prestar informações (fls. 178).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 13.584, de 14 de maio de 2.009, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre aplicação de multas e recolhimento de veículos em áreas privadas que especifica e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º- A Prefeitura Municipal de Campinas poderá, por meio de seu órgão competente, celebrar convênios, contratos de parcerias ou outros instrumentos, para fiscalizar, multar e recolher veículos estacionados ou conduzidos irregularmente em áreas privadas.

Art. 2º - A Prefeitura, mediante acordo com proprietário ou ente responsável, poderá, entre outros, atuar em:

- Shopping Centers;

-Hiper e Supermercados;

-Estabelecimentos de ensino;

-Órgãos Públicos;

-Estádios;

-Condomínios.

Art. 3º - A Municipalidade estabelecerá preço público para a prestação de serviço prevista nesta lei.

Parágrafo único. O preço público não será exigido em sendo entidade pública.

Art. 4º - A Prefeitura Municipal estabelecerá os valores das multas que serão aplicadas aos condutores infratores, podendo utilizar como parâmetro os mesmos valores que utiliza em situação semelhante prevista no Código Brasileiro de Trânsito – CBT.

Parágrafo único - Poderão ser cobrados os mesmos valores praticados pelo Executivo, exigidos nas ocorrências previstas pelo CBT, nas remoções de veículos para o pátio municipal e respectiva estada.

Art. 5º - Qualquer munícipe poderá acionar a fiscalização da Prefeitura quando verificar a ocorrência de infrações. O representante do estabelecimento deverá comunicar à fiscalização as infrações que flagrar.

Art. 6º - O estabelecimento deverá afixar em locais visíveis informações sobre o acordo existente com a Prefeitura Municipal a respeito da fiscalização e aplicação de multas e remoção de veículos.

Art. 7º - o estabelecimento que celebrar acordo com a Prefeitura Municipal ficará isento das multas referentes ao uso indevido de vagas exclusivas para idoso ou portador de deficiência.

Art. 8º - Os valores recolhidos em decorrência da aplicação desta lei serão revertidos para o Fundo Municipal de Defesa dos Direitos Difusos.

Art. 9º - Esta lei será regulamentada no prazo de sessenta dias contados da data de sua publicação.

Art. 10- Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo, na medida em que impõe obrigação à Administração Pública de celebrar convênios, contratos de parcerias  ou outros instrumentos, para fiscalizar, multar e recolher veículos estacionados ou conduzidos irregularmente em áreas privadas (Shopping Centers, Hiper e Supermercados, Estabelecimentos de Ensino, Órgãos Públicos, Estádios e Condomínios).

Ademais, referida legislação impõe à Administração Pública a estipulação do preço público para a prestação de serviço por ela criada, fixando regras para seu cumprimento.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei determine o Poder Executivo a fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração (ou seja, ato administrativo), isso significa invasão da esfera de competências do Executivo por ato do Legislativo, configurando clara violação do princípio da separação de poderes.

Resolver se deverá ou não o Município proceder à fiscalização de veículos em áreas privadas, é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Não bastasse isso, a lei impugnada provocará, evidentemente, realização de despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes de receita para tanto.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

Por fim, a legislação impugnada igualmente se afigura inconstitucional, na medida em que o legislador municipal invadiu a competência da União, a quem cabe privativamente legislar sobre trânsito, nos termos do art. 22, XI, da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 13.584, de 14 de maio de 2.009, do Município de Campinas, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre aplicação de multas e recolhimento de veículos em áreas privadas que especifica e dá outras providências”.

São Paulo, 31 de julho de 2.012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb