Parecer
Autos nº. 0027900-41.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Suzano
Objeto: Lei nº 4.509, de 06 de setembro de 2011, do Município de Suzano
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 4.509/2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização ao Poder Executivo para instituir o Programa de Proteção à Saúde da Gestante e do Recém – nascido no Município de Suzano, e dá outras providências”. Iniciativa parlamentar. Controle da Administração. 2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (arts. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Paulista). 3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receita (art. 25 da Constituição Paulista). 4) Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por alvo a Lei Municipal n.º 4.509, de 06 de setembro de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização ao Poder Executivo para instituir o Programa de proteção à Saúde da gestante e do Recém – nascido no Município de Suzano, e dá outras providências”.
Sustenta o autor que a referida legislação de iniciativa parlamentar é inconstitucional por ter disciplinado matéria que é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, a quem cabe disciplinar ações governamentais na área da saúde, além do que, cria despesas sem indicar a respectiva fonte.
Argumenta, também, caber à União legislar sobre saúde.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 25).
O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer in albis o prazo para prestar informações (fls. 32).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, para defender o ato impugnado.
No mérito, em que pese a
boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando
na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com
nossa sistemática constitucional.
Este é o texto da vergastada norma:
"Art. 1º - Por esta Lei fica
autorizado o Poder Executivo Municipal a instituir o Programa de Proteção à
Saúde da Gestante e do Recém - nascido no Município de Suzano.
Art. 2º - O Programa a que se
refere o art. 1º tem por finalidade:
I- Assegurar à mulher e ao
recém-nascido a assistência Integral à saúde, incluindo pré-natal, parto e
pós-parto;
II-Facilitar e promover o acesso
da gestante e do recém-nascido à rede pública de saúde.
III-Prevenir doenças do ciclo
gravídico-puerperal até o primeiro ano de vida da criança visando a diminuir os
índices de mortalidade materna e infantil.
Art. 3º - Ficam garantidos à
gestante e ao recém- nascido atendidos pela rede pública municipal de saúde os
benefícios deste Programa, desde que cumpridas as
obrigações constantes no art. 6º desta Lei.
Art. 4º - Para o fim específico
desta Lei, as pessoas cadastradas receberão gratuitamente carteira de
identificação de gestante onde constarão dados do pré-natal.
Parágrafo único- A Carteira de
identificação da gestante estará condicionada à elaboração de laudo médico
atestando que a mesma está em tratamento e indicando-lhe o período previsto,
limitado até o primeiro ano de vida do recém-nascido, que corresponderá ao
prazo de validade da carteira de identificação de gestante.
Art. 5º - São benefícios
garantidos às participantes do Programa de Proteção da Saúde da Gestante e do
Recém-nascido durante o período do tratamento:
I- a garantia de vaga nos leitos
das maternidades e dos hospitais públicos municipais e dos hospitais e
maternidades no Município de Suzano;
II- a gratuidade no transporte
coletivo urbano á gestante nos traslados referentes ao acompanhamento da
gestação.
III- não faltar à consulta ou ao
retorno;
IV- comparecer ás campanhas de
vacinação promovidas pela rede pública de saúde.
Parágrafo único. Essas obrigações
constarão no verso da carteira de identificação de gestante.
Art. 7º - Poderá o Município
afixar cartazes nos hospitais, nos postos de saúde e nas repartições públicas
municipais divulgando o programa de que trata esta Lei e também divulgar o
programa pelos órgãos de imprensa locais (jornais, rádios e televisões) e na
rede mundial de computadores.
Art. 8º - O Poder Executivo
regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias.
Art. 9º - As despesas decorrentes
da aplicação desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário, e constantes na Lei orçamentária
Anual – 2010, sob código 04122 da Secretaria Municipal de Saúde, programa
7158.2626-manutenção da Secretaria – SMS.
Art. 10 – Esta
Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições
contrárias”.
Como se pode observar, a lei, de
iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas
pela Administração Pública, tais como: a) assistência integral à saúde da
gestante e ao recém – nascido, incluindo pré-natal, parto e pós – parto; b)
garantia de leitos das maternidades e dos hospitais públicos municipais, c)
gratuidade no transporte coletivo urbano à gestante nos traslados referentes ao
acompanhamento da gestação; d) distribuição gratuita de medicamentos de rotina
prescritos durante o tratamento, etc.
Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.
Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.
Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com as gestantes e com os recém-nascidos, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.
Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).
Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.
As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.
Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).
Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).
Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa de assistência à gestante e ao recém-nascido e/ou fixar as regras para a sua execução.
Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).
Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:
“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).
Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com a disposição do artigo 25 e inc. I, da Constituição Bandeirante.
Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição de programa como este, gera despesas para o Município, que não estão cobertas pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.
Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 4.509, de 06 de setembro de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização ao Poder Executivo para instituir o Programa de proteção à Saúde da gestante e do Recém – nascido no Município de Suzano, e dá outras providências”.
São Paulo, 24 de julho de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb