Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0057504-47.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 207, de 28 de novembro de 2011, do Município de Suzano 

Ementa:

1) Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito em face da Lei Complementar nº 207, de 28 de novembro de 2011, do Município de Suzano, que estabelece que o Município poderá receber por doação todo e qualquer bem móvel ou imóvel localizado no referido Município, podendo ser de pessoa física ou jurídica, desde que não possua débito com a Fazenda Estadual ou Municipal. 2) Lei de iniciativa parlamentar. 3) Violação dos arts. 5º, caput, 25, 47, II e XIV e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo. 4) Parecer pela procedência da ação. 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por alvo a Lei Complementar n° 207, de 28 de novembro de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a doação ao Poder Público de bens móveis e imóveis dentro do Município de Suzano, e dá outras providências”.

O autor sustenta que há ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Apontam-se como violados os arts. 5º, caput, 25 e 144, todos da Constituição Paulista.

O pedido de liminar foi denegado pela R. Decisão de fls. 19.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 28/29).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo que deu origem à legislação impugnada (fls. 31/32).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei Complementar nº 207, de 28 de novembro de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a doação ao Poder Público de bens móveis e imóveis dentro do Município de Suzano e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - O Poder Público Municipal poderá receber, por doação, todo e qualquer bem móvel ou imóvel localizado no município de Suzano podendo ser de pessoa física ou jurídica.

Parágrafo único- Fica vedado o recebimento por doação de bens móveis e imóveis com qualquer tipo de débito com a Fazenda Estadual ou Municipal.

Art. 2º - O Poder Público Municipal arcará com as despesas de regularização dos documentos para concretização de sua transferência e viabilizará o encaminhamento do objeto de doação ao setor público competente, obedecidos os parâmetros legais.

§1º - O doador poderá indicar a destinação específica do bem doado, desde que atendido o interesse público.

§2º - O imóvel já ocupado pela administração municipal que for oferecido por doação terá preferência na conclusão por já estar sendo utilizado de alguma forma por algum setor do poder público municipal.

§3º - O bem móvel ou imóvel objeto de doação ao Poder Público deverá ser incorporado ao patrimônio público, conforme as normas e legislações específicas.

Art. 3º - Todos os cidadãos ou empresas interessadas em efetuar a doação de determinado bem móvel ou imóvel existente no município de Suzano, poderá fazê-lo diretamente na Secretaria Municipal de Política Urbana munidos dos documentos que comprovam sua legitimidade em efetuar a proposta de doação que será analisada pelo órgão competente definido pelo Poder Público, devendo os ajustes dela decorrentes, atenderem à legislação em vigor.

Art. 4º - As despesas referente à execução da presente Lei correrão por conta de verbas dos orçamentos vigente e futuros, suplementadas, se necessário, e previstas na Lei Orçamentária Anual -2011, através da Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos (05.00.00), programa 7135, função 04, subfunção 122, grupo de despesa 3, fonte de recurso 01, código 04. 122. 7135.2435- Manutenção das Atividades.

Art. 5º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a  Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

O tema trazido a lume diz respeito à gestão do patrimônio público, que pertence exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo.

Nesse passo, penso que o diploma impugnado, de iniciativa parlamentar, representa indevida interferência em atividade administrativa, própria do Poder Executivo, em violação do princípio da separação de poderes.   A conveniência e oportunidade do recebimento de doações de bens móveis ou imóveis há de ser analisada, em cada caso, pelo Poder Executivo, sendo desnecessária a existência da presente legislação para este fim.       

Sobre a matéria, ensina Hely Lopes Meirelles:

         “Em princípio, o prefeito pode praticar os atos de administração ordinária independentemente de autorização especial da Câmara. Por atos de administração ordinária entendem-se todos aqueles que visem à conservação, ampliação ou aperfeiçoamento dos bens, rendas ou serviços públicos. (...)

            Advirta-se, ainda, que, para atividades próprias e privativas da função executiva, como realizar obras e serviços municipais, para prover cargos e movimentar o funcionalismo da Prefeitura e demais atribuições inerentes à chefia do governo local, não pode a Câmara condicioná-las à sua aprovação, nem estabelecer normas aniquiladoras dessa faculdade administrativa, sob pena de incidir em inconstitucionalidade, por ofensa a prerrogativas do prefeito.  (Direito Municipal Brasileiro, 9ª ed., pp. 519/520).

         Como já proclamou esse Egrégio Plenário,

         “Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. Fonseca Tavares).

Ademais, referida lei cria obrigação para Administração e a onera, na medida em que estabelece que o Poder Público Municipal arcará com as despesas e regularização dos documentos para a concretização de sua transferência e viabilizará o encaminhamento do objeto de doação ao setor público competente.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela administração do patrimônio público, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade quanto ao recebimento de doação de bens móveis ou imóveis por parte da Administração Pública Municipal. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da  Lei Complementar n° 207, de 28 de novembro de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a doação ao Poder Público de bens móveis e imóveis dentro do Município de Suzano, e dá outras providências”.

São Paulo, 06 de junho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb