Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0057508-84.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto: Lei nº 4.473, de 16 de maio de 2011, do Município de Suzano

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 4.473/2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização para a distribuição de fraldas descartáveis para pessoas portadores de necessidades especiais, física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas, que não possuam recursos para adquiri-las e dá outras providências”. Iniciativa parlamentar. Controle da Administração.  2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista). 3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art. 25 da Constituição Paulista).  4) Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por alvo a Lei Municipal                       n.º 4.473, de 16 de maio de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização para a distribuição gratuita, pelo Poder Público Municipal, de fraldas descartáveis para pessoas portadoras de necessidades especiais, física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas, que não possuam recursos para adquiri-las e dá outras providências”.

 Sustenta o autor que a referida legislação de iniciativa parlamentar é inconstitucional, por ter disciplinado matéria que é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, a quem cabe disciplinar ações governamentais na área da saúde e relacionada aos idosos, além do que, cria despesas sem indicar a respectiva fonte.

Argumenta, também, caber a União legislar sobre saúde e sobre às pessoas idosas, tendo sido editada para este fim o Estatuto dos Idosos (Lei  Federal n. 10.741/03).

 A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 25/26).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 32/33.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 28/30).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

        Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

         Este é o texto da vergastada norma:

"Art. 1º - Fica o Poder Público Municipal de Suzano autorizado a distribuir fraldas descartáveis, para uso contínuo ou temporário, para pessoas portadoras de necessidades especiais, física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas, que não possuam condições de adquiri-las, nas condições estabelecidas nesta Lei.

§1º - Poderão ser beneficiadas pela presente Lei todas as pessoas nas condições de que trata o caput deste artigo, desde que sua renda familiar individual não seja superior a 02 (dois) salários mínimos vigentes do País.

§2º - Considera-se, para os efeitos desta Lei, como renda familiar individual, a totalidade da renda da família dividida pelo número de seus integrantes.

§3º - Cada beneficiário da presente Lei terá direito a tantas fraldas e sondas urinárias descartáveis quanto consideradas necessárias pelo médico responsável, limitado o total a no máximo 90 (noventa) fraldas por mês para cada pessoa.

Art. 2º - As fraldas descartáveis de que trata a presente Lei não poderão ser negociadas pelo beneficiário, por sua família ou por seus responsáveis, a qualquer título, sendo que a infração desta proibição importará em cancelamento do benefício.

Art. 3º - O pedido para a concessão do benefício será dirigido à Secretaria Municipal de Saúde, órgão responsável pela aplicação do disposto nesta Lei, na forma de seu regulamento, e será instruído com os seguintes documentos:

I- Cópia de Carteira de Identidade do beneficiário ou de sua Certidão de Nascimento;

II- Atestado médico comprovando a existência de deficiência física, mental ou neurológica, de mobilidade reduzida ou a situação de idoso acamado, com esclarecimento sobre a natureza permanente ou transitória desse estado;

III- Cópia de comprovante de residência;

IV- Receita médica na qual conste o nome do paciente e a indicação da necessidade de uso de fraldas descartáveis, com especificação do tamanho e da quantidade adequados à situação;

V- Compromisso do beneficiário ou de seu responsável de uso de fraldas descartáveis exclusivamente para os fins estabelecidos nesta Lei.

Art. 4º - O Poder Público Municipal poderá firmar convênios e parcerias com outras esferas de governo e com empresas e entidades não governamentais para a consecução dos objetivos estabelecidos nesta Lei, inclusive para a produção de fraldas descartáveis de modo mais econômico para sua distribuição gratuita nos termos ora fixados.

Art. 5º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário;

Art. 6º - O Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados da sua publicação.

Art. 7º- Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

 

         Como se pode observar, a lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo a necessidade de distribuição gratuita pelo Poder Público Municipal, de fraldas descartáveis para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosa acamada que não possuam recurso para adquiri-las.

         Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no           art. 5º e no art. 47 II e XIV da Constituição Paulista.

         É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

         Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

         Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

         Dizer a respeito da execução de serviços e atividades públicas do município cabe ao Executivo. Impor-lhe os ônus criados pela lei impugnada é deliberar em caráter administrativo, o que extrapola a função legislativa.

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

            “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

         Não bastasse o acima exposto, em casos assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder Público, sem a indicação das respectivas fontes de receita, em violação ao disposto no art. 25 da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 4.473, de 16 de maio de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a autorização para a distribuição gratuita, pelo Poder Público Municipal, de fraldas descartáveis para pessoas portadoras de necessidades especiais, física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosas acamadas, que não possuam recursos para adquiri-las e dá outras providências”.

 

São Paulo, 22 de maio de 2012.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

  Jurídico

vlcb