Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0059978-25.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Birigui

Objeto: impugnação do art. 6º, da Lei n. 5.302, de 14 de junho de 2010, do Município de Birigui

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Impugnação do art. 6º, da Lei n. 5.302, de 14 de junho de 2010, do Município de Birigui, que “dispõe sobre a concessão de ‘Vale-Alimentação’ e Institui Prêmio Assiduidade aos Servidores do Município, nos termos que especifica e dá outras providências”. Dispositivos alterados por emenda parlamentar, que tratam do regime jurídico de servidores municipais.

2)      Regime jurídico do funcionalismo municipal. Matéria incluída na iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (art. 24, § 2º, n. 4 da Constituição do Estado, aplicável por força do art. 144 da mesma Carta).

3)      Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo  Prefeito Municipal de Birigui, tendo como alvo o art. 6, da Lei Municipal n. 5.302, de 14 de junho de 2010, do Município de Birigui, cujas redações foram determinadas pela Emenda n. 1 e pela Emenda n. 2 ao Projeto de Lei n. 42/2010. As mudanças perpetradas referem-se ao regime jurídico de servidores municipais, no que tange à instituição do benefício do “prêmio de assiduidade”.

Alega o autor a inconstitucionalidade em função do vício de iniciativa, da violação ao princípio da separação de poderes e da criação de despesa sem indicação de recursos. Aponta como violados os arts. 5º, 24, § 5º, II, da Constituição Estadual.

Foi concedida a liminar, determinando-se a suspensão dos § § 1º e 2º do art. 6º, da Lei n. 5.302/2010, do Município de Birigui                                                (fls. 242/243).

Contra a referida decisão, o Município de Birigui interpôs embargos de declaração, os quais não foram conhecidos (fls. 263/264).

Não se conformando com a r. decisão, o Município de Birigui interpôs agravo regimental, visando o deferimento da medida liminar para que também seja suspendida a eficácia do art. 6º, caput, da Lei n. 5.302/2010, do Município de Birigui (fls. 267/272).

O referido recurso foi provido (fls. 285/289).

Contra o referido recurso, a Câmara Municipal interpôs agravo regimental (fls. 295/310), cujo seguimento foi negado (fls. 356/358).    

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 370/371).

A Câmara Municipal apresentou informações (fls. 372/390).

É o relato do essencial

Inicialmente, insta observar que a redação original do art. 6º do Projeto de Lei n. 42/10, apresentava a seguinte redação:

“(....)

Art.6º - Fica criado o prêmio assiduidade, à ser pago mensal e individualmente no valor de R$ 60,00 (sessenta reais), ao servidor ativo que possuir frequência integral ao trabalho durante o mês, mediante crédito no Vale Alimentação.

§1º- O servidor que possuir uma ou mais ausências de trabalho durante o mês, justificadas ou injustificadas, sob qualquer título ou pretexto, incluindo abondas, licenças médicas, afastamentos e outras de qualquer ordem ou natureza, bem como aquele que, por qualquer motivo não trabalhar o período integral do mês, não fará jus ao prêmio de assiduidade.

§2º - Não importarão em perda do prêmio os afastamentos decorrentes de férias, licença – prêmio e requisições judiciais, nos termos da lei.”

 

Por outro lado, o art. 6º da Lei n. 5. 302, de 14 de junho de 2010, do Município de Birigui, que “dispõe sobre concessão de ‘vale alimentação’ e institui prêmio de assiduidade aos servidores do Município, nos termos que especifica, e dá outras providências”, com a redação dada pelas emendas modificativas anteriormente mencionadas estabelece:

“(....)

Art.6º - Fica criado o prêmio assiduidade, à ser pago mensal e individualmente no valor de R$ 60,00 (sessenta reais), ao servidor ativo que possuir frequência integral ao trabalho durante o mês, mediante crédito no Vale Alimentação.

§1º - O servidor que possuir uma ou mais ausências ao trabalho dentro do mês, injustificadamente, sob qualquer título ou pretexto, não fará jus ao prêmio assiduidade.

§2º - Não importarão em perda do prêmio os afastamentos decorrentes de licença-maternidade (não gestante), férias, licença – prêmio, requisições judiciais e policiais, licenças provenientes de acidentes de trabalho, as doenças graves, contagiosas ou incuráveis, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkison, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose, anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome da Imunodeficiência Adquirida –AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada.” 

 

Os dispositivos em apreço decorrem de emendas modificativas, impondo-se saber, para a solução deste processo, se são legítimas à luz do processo legislativo traçado pela Constituição do Estado.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos membros do Congresso, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

“Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º., II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do beneficio instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).

Reconhece-se haver, portanto, limites ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo, para evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

Com essa premissa, entendo que as emendas em análise não se afiguram legítimas.

Em primeiro lugar observo que a nova redação do art. 6º da Lei n. 5.302/2010, do Município de Birigui, nasceu no Poder Legislativo, quando é certo que não compete aos Vereadores projetar direito novo no que diz respeito à concessão de benefícios para servidores públicos.

A  norma é inconstitucional, portanto, à luz dos artigos 5º; 24, § 2º, 4; 37 e 47, incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

Dizem a doutrina e a jurisprudência que cabe ao Poder Executivo primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Decorre da sistemática da separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo.

A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; e sobre o regime jurídico dos servidores públicos (cf. art. 24, § 2º, n. 1 a 6, da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art. 61, §1º, inciso II, da Constituição Federal.

De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina caber ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47, incisos II e XIV).

Deste modo, no caso em exame, há tanto violação da reserva de iniciativa, como do princípio da separação de poderes.

O legislador municipal, na hipótese analisada, dispôs sobre benefícios de servidores públicos municipais, isto é, a respeito de um dos aspectos que envolvem seu regime jurídico. Cuida-se, no entanto, de matéria de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo, nos moldes do art. 24, § 2º, 4 da Constituição Paulista (que reproduz o art. 61, §1º, II c da Constituição Federal).

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que devem existir entre os Poderes.

Essa é a orientação desse E. Tribunal de Justiça nos casos análogos:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal que autoriza o Executivo a fornecer aos servidores públicos municipais, ativos, inativos, pensionistas, complementados e complementadas pensionistas, uma cesta básica de alimentação - Matéria de iniciativa parlamentar que se refere a administração pública, cuja gestão e de competência do Prefeito - As regras da Constituição Federal sobre iniciativa reservada são de observância compulsória pelo Estado e pelos Municípios - Na espécie, prerrogativas exclusivas do Prefeito Municipal foram atingidas pela lei atacada, que interferiu na competência legislativa reservada ao Chefe do Executivo local, ao invadir a seara de organização, direção e contratação dos serviços e fornecimentos - Violação dos arts 5o, ‘caput’ e 24, §2°, 1 e 4 da CE/89. Ação julgada procedente” (ADIN 157.098-0/7, j. 27/6/2008, rel. Henrique Nelson Calandra)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Expressão constante do Art. Io da Lei Municipal n. 3.526/2005, de Lençóis Paulista - Acréscimo, por emenda parlamentar, que restringe a concessão de cestas básicas aos servidores públicos municipais a determinado teto salarial - Inadmissibilidade - Matéria cuja iniciativa legislativa e privativa do chefe do Poder Executivo - Art. 24, § 2o, 1 e 4, da Constituição Estadual - Auto-organização dos municípios está subordinada aos ditames das Constituições federal e estadual - Configurada a afronta ao princípio da separação de poderes - Emenda a projeto de lei possui caráter acessório, descabendo seu uso indiscriminado - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade da expressão acrescentada por emenda parlamentar” (ADIN 130.674-0/9, j. 21/9/2007, rel. Maurício Ferreira Leite)  

Por fim, o ato normativo impugnado decorrente das emendas modificativas, além de gerar aumento de despesas, passou a não guardar relação com o projeto inicial apresentado pelo Chefe do Poder Executivo. 

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do  art. 6º da Lei n. 5. 302, de 14 de junho de 2010, do Município de Birigui, que “dispõe sobre concessão de ‘vale alimentação’ e institui prêmio de assiduidade aos servidores do Município, nos termos que especifica, e dá outras providências”.

São Paulo, 07 de agosto de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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