Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0063122-70.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Ubatuba

Objeto: Lei Municipal nº 3.465, de 03 de janeiro de 2012, de Ubatuba

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 3.465, de 03 de janeiro de 2012, de Ubatuba, decorrente de iniciativa parlamentar, que “Altera a Lei Municipal nº 840/86, liberando o horário de funcionamento dos módulos especiais da Praia das Toninhas e da Maranduba”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Ato normativo que revela, na prática, verdadeiro ato de gestão administrativa.

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Ubatuba, tendo como alvo a Lei Municipal nº 3.465, de 03 de janeiro de 2012, de Ubatuba, decorrente de iniciativa parlamentar, que “Altera a Lei Municipal nº 840/86, liberando o horário de funcionamento dos módulos especiais da Praia das Toninhas e da Maranduba”.

Alega o autor a ocorrência de desrespeito ao princípio da separação de poderes, pois tratar da matéria cabe apenas ao Chefe do Poder Executivo (artigos 5º, 19, V e 144 da Constituição do Estado).

Foi determinada, liminarmente, a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 18).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 24/26).

É o relato do essencial.

Em que pese determinação em contrário (fls. 18), rogamos vênia para requerer seja citado o Senhor Procurador-Geral do Estado para que se manifeste a respeito do pedido de declaração de inconstitucionalidade, tendo em vista o disposto no art. 90, § 2º da Constituição do Estado.

A ação deve ser julgada procedente.

A Lei Municipal nº 3.465, de 03 de janeiro de 2012, de Ubatuba, decorrente de iniciativa parlamentar, que “Altera a Lei Municipal nº 840/86, liberando o horário de funcionamento dos módulos especiais da Praia das Toninhas e da Maranduba”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Ao inciso IV, do artigo 11, da Lei Municipal nº 840 de 05 de novembro de 1986, com a redação dada pela Lei Municipal nº 1628 de 03 de setembro de 1997, fica acrescentada a expressão ‘e nos MÓDULOS instalados na Praia das Toninhas e na Praia da Maranduba que ficarão liberados da limitação de horário, vedada a apresentação ao vivo a partir das 20 hs’, passando a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 11. Ao permissionário é vedado:

I-...

...

IV – manter o MÓDULO ou CARRINHO ESPECIAL, a seguir designados de equipamento, em funcionamento no período noturno, compreendido entre 20 horas e 05 horas, exceto os instalados na Praia do Itaguá, que poderão funcionar até as 24:00 horas, e os MÓDULOS instalados na Praia Grande e Praia das Toninhas, que ficarão liberados da limitação de horário, vedada apresentação de música ao vivo a partir das 20:00 horas’.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Observe-se que a pretexto de editar ato normativo, o Poder Legislativo Municipal praticou verdadeiro ato de gestão administrativa, pois disciplinou limites específicos a serem seguidos nos atos administrativos de autorização ou permissão de uso de bens públicos, referindo-se especificamente a locais, horários, e às condutas autorizadas ou negadas aos “módulos” ou “carrinhos especiais”, sob responsabilidade de particulares, nas praias do Município de Ubatuba.

Com a devida vênia, os limites da autorização ou permissão devem ser definidos pela Administração Pública Municipal, e não pelo Poder Legislativo, por tratar-se de típico ato administrativo.

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se, portanto, invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental, ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do acolhimento da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.465, de 03 de janeiro de 2012, de Ubatuba.

São Paulo, 29 de maio de 2012.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

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