Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0066423-25.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto: Lei Municipal nº 4.538, de 28 de dezembro de 2011, de Suzano

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.538, de 28 de dezembro de 2011, de Suzano, de iniciativa parlamentar, que “Exige que as instituições que operem com outorga de concessão de crédito ou financiamento para fornecimento de produtos ou serviços localizadas na cidade de Suzano informem ao consumidor a opção de quitação antecipada do débito, e dá outras providências”.

2)      Inexistência de inconstitucionalidade. Ausência de reserva de iniciativa, cujas hipóteses são indicadas taxativamente na CR (art. 61, § 1º).

3)      Não ocorrência de violação da separação de poderes (art. 2º da CR). A fiscalização quanto ao cumprimento das leis é inerente ao Poder de Polícia exercido pela Administração Pública. Entendimento diverso, levado às últimas consequências, esvaziaria por completo a iniciativa do Poder Legislativo para o processo de formação das leis, contrariando o art. 61da CR.

4)      Pedido de declaração de inconstitucionalidade com fundamento no art. 25 da Constituição do Estado. Hipótese em que o alegado aumento de despesa, caso ocorra, não decorrerá diretamente da lei. Questão de fato. Inviabilidade de exame em sede de ação direta, sob pena de contrariedade aos limites impostos ao processo objetivo no plano estadual, por força do art. 125, § 2º, da CR.

5)      Parecer pela improcedência da ação direta.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Suzano, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.538, de 28 de dezembro de 2011, de Suzano, de iniciativa parlamentar, que “Exige que as instituições que operem com outorga de concessão de crédito ou financiamento para fornecimento de produtos ou serviços localizadas na cidade de Suzano informem ao consumidor a opção de quitação antecipada do débito, e dá outras providências”.

Alega o autor a ocorrência de desrespeito ao princípio da separação de poderes, por tratar-se de matéria cabe apenas ao Chefe do Poder Executivo, bem como que a lei não contém a indicação da receita para fazer frente às novas despesas dela decorrentes (artigos 5º e 144 da Constituição do Estado).

Foi determinada, liminarmente, a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 20/22).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 37/38).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 31/32, 35).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 4.538, de 28 de dezembro de 2011, de Suzano, de iniciativa parlamentar, que “Exige que as instituições que operem com outorga de concessão de crédito ou financiamento para fornecimento de produtos ou serviços localizadas na cidade de Suzano informem ao consumidor a opção de quitação antecipada do débito, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Toda e qualquer instituição que opere com outorga de crédito ou concessão de financiamento para fornecimento de produtos ou serviços localizada na cidade de Suzano fica obrigada a adotar as seguintes medidas para que seja o consumidor informado quanto à opção de quitação antecipada do débito a:

I – imprimir nos carnês de pagamento a seguinte frase: ‘O Código de Defesa do consumidor (Lei Federal 8.078/90) garante ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcial, com redução proporcional de juros e demais acréscimos’;

II – manter afixado no local de atendimento ao público, em posição de fácil visibilidade para o consumidor, cartaz ou placa legível à distância, com os dizeres previstos no inciso anterior.

Art. 2º. É obrigatório constar em cada carnê de parcelamento, o valor restante correspondente para a quitação do débito, sendo facultado ao consumidor quitá-lo ao pagamento de cada parcela.

Art. 3º. O descumprimento do disposto no artigo 1º sujeita o infrator a uma advertência por escrito, com o prazo de 30 dias para adequação.

§ 1º. O descumprimento do prazo previsto no caput deste artigo sujeitará o infrator à multa no valor de 5.000 (cinco mil) Unidades Fiscais do Município (UFM), sendo concedido novo prazo de 30 dias para adequação.

§ 2º. A reincidência, não sendo realizada a adequação dentro do prazo, sujeitará o infrator à multa correspondente ao dobro do valor previsto no inciso anterior, e, assim sucessivamente até que sejam obedecidas as determinações previstas na presente lei.

Art. 4º. As instituições a que se refere o artigo 1º terão o prazo de 90 (noventa) dias para adequar-se ao disposto na presente lei, contados da sua publicação.

Art. 5º. O Poder Executivo Municipal regulamentará a presente lei, no prazo de 60 (sessenta) dias contados da sua publicação.

Art. 6º. As despesas referentes à execução da presente Lei correrão por conta das verbas dos orçamentos vigente e futuros, suplementadas, se necessário, e previstas na Lei Orçamentária Anual 2011, através da Secretaria Municipal de Governo (11.00.00). Programa 8047, Função 06, Subfunção 183, Grupo de Despesa 3, Fonte de Recurso 01, código 06.183.8047.6026 – Ampliar Fiscalização Municipal.

Art. 7º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Com a devida vênia, a ação deve ser julgada improcedente.

Em que pese nosso respeito pelo entendimento adotado pelo autor, a norma impugnada não é inconstitucional, e caso seja julgada procedente a ação direta, isso significará contrariedade aos art. 2º, 61, e 125, § 2º, da Constituição da República, pelos motivos expostos a seguir.

Para a construção de toda a argumentação contida na inicial o autor parte da premissa, mais ou menos explícita, de que na fiscalização e na aplicação da lei o Município deverá aparelhar melhor seus órgãos de fiscalização.

Em outras palavras, deixa entrever que na aplicação da lei, indiretamente, poderá ocorrer o aumento de despesas para as quais a lei não indica receitas, pois deverá ser criado órgão de fiscalização, ou haverá alteração na estrutura ou rotina de trabalho dos órgãos de municipais de controle já existentes.

Com a devida vênia, se esse raciocínio estiver correto, doravante restará completamente eliminada a iniciativa legislativa parlamentar.

Isso, na medida em que, como toda lei editada pelo Poder Legislativo exige fiscalização (inerente ao Poder de Polícia da Administração Pública), chegar-se-á à conclusão de que sempre, inexoravelmente, a iniciativa do processo de formação das leis deve partir do Poder Executivo.

Esse raciocínio, ao esvaziar a iniciativa parlamentar para o processo de formação das leis, contraria o art. 61 da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 24 da Constituição Paulista), bem como contraria o art. 2º da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 5º da Constituição Estadual).

O equívoco dessa construção, com absoluto respeito, fala por si mesmo.

O entendimento pacificado há muito no âmbito do Col. STF, intérprete último da Constituição, é de que reserva de iniciativa é matéria de direito estrito e não pode ser interpretada extensiva ou analogicamente.

E a situação tratada nestes autos não se encaixa em nenhuma das hipóteses taxativamente tipificadas, de reserva de iniciativa do Poder Executivo, previstas no art. 61, § 1º, da CR (reproduzidas no art. 24, § 2º, da Constituição Paulista), aplicáveis, por força do princípio da simetria, ao processo legislativo estadual ou municipal.

Confira-se o precedente a seguir transcrito, aplicável ao caso em exame mutatis mutandis:

“(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado. (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

Assim, se não há regra expressa prevendo reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, afirmar que ela existe significa contrariar o art. 61, da CR (que estabelece a iniciativa de parlamentares para o processo de formação das leis e os casos limitados de reserva de iniciativa do Chefe do Executivo), bem como contrariar o art. 2º da CR, dando ao princípio da separação de poderes alcance que ele não tem.

Mas não é só.

Observe-se que a lei não cria diretamente órgão administrativo para fins de fiscalização, nem estabelece rotina para o controle, por parte do Poder Público local, quanto ao seu cumprimento.

Dessa forma, saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, para fins de aplicação do art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo, é uma questão de fato.

Mais ainda é possível afirmar.

Saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, é, em verdade, uma conjectura relativamente aos fatos.

Mas o exame de questões de fato (ou de conjecturas relativamente aos fatos) é vedado em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Isso, porque o art. 125, § 2º, da CR apenas autoriza o constituinte estadual a instituir “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual”.

Em outras palavras, por força do art. 125, § 2º, da CR, é legitimada a previsão na Constituição do Estado da ação direta de inconstitucionalidade por força da qual o Tribunal de Justiça pode examinar a compatibilidade entre leis locais e a Carta Estadual.

A Constituição da República não autorizou, entretanto, que para examinar a inconstitucionalidade de leis locais no processo objetivo, o Tribunal de Justiça examine questões de fato.

Aliás, nem ao Col. STF foi concedida tal autorização, pois o que a Constituição permite à Suprema Corte, no art. 102, I, a, é que seja examinada, apenas, a “inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

A Constituição da República, por meio de tais dispositivos, criou mecanismos de controle abstrato, e não concreto, sobre a constitucionalidade das leis.

Daí o entendimento absolutamente pacífico no sentido de que, no processo objetivo, a cognição da Corte está limitada ao confronto direto entre a lei e a norma constitucional indicada como parâmetro de controle, sendo inviável estender esse exame à análise de inconstitucionalidades reflexas ou às questões de fato.

Confira-se, no Col. STF:

“(...)

A Constituição da República, em tema de ação direta, qualifica-se como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o STF. (...). O controle normativo abstrato, para efeito de sua valida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da CF. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional (...) (ADI 1.347-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 1º-12-1995). No mesmo sentido: ADPF 93-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009; ADI 3.376, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-6-2005, Plenário, DJ de 23-6-2006. (g.n.)

(...)”

Não bastasse isso, nem mesmo o art. 25 da Constituição do Estado foi contrariado.

Recordemos a redação desse dispositivo da Constituição Estadual:

“(...)

Art. 25. Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

(...)”

Observe-se, porém, que o art. 6º da Lei Municipal nº 4.538, de 28 de novembro de 2011, de Suzano, expressamente indicou a fonte de receita:

“(...)

Art. 6º. As despesas referentes à execução da presente Lei correrão por conta das verbas dos orçamentos vigente e futuros, suplementadas, se necessário, e previstas na Lei Orçamentária Anual 2011, através da Secretaria Municipal de Governo (11.00.00). Programa 8047, Função 06, Subfunção 183, Grupo de Despesa 3, Fonte de Recurso 01, código 06.183.8047.6026 – Ampliar Fiscalização Municipal.

(...)”

Assim, não houve desrespeito ao art. 25 da Constituição do Estado.

Por outro lado, saber se a indicação foi feita corretamente, é uma questão que pressupõe o confronto entre duas normas infraconstitucionais (a lei impugnada e a lei orçamentária municipal), análise essa que vai além da cognição possível em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Em síntese, a lei não contraria dispositivos da Constituição do Estado e não é correta, em nosso sentir, a afirmação de que há inconstitucionalidade em seu texto.

Assim, considerando que nada há no ato normativo indicando, diretamente, a criação de órgãos ou cargos públicos, ou mesmo a modificação de rotinas de fiscalização, caso seja declarada a inconstitucionalidade da lei com base em mera possibilidade de projeção concreta quanto aos fatos (suposição de aumento de despesas), isso significará contrariedade ao art. 125, § 2º, da CR.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da constitucionalidade da Lei Municipal nº 4.538, de 28 de novembro de 2011, de Suzano, com a improcedência da ação direta.

São Paulo, 18 de junho de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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