Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0066425-92.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.458, de 15 de abril de 2011, de Suzano

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.458, de 15 de abril de 2011, de Suzano, autoriza o Poder Executivo a “firmar convênio com escolas particulares de educação infantil, objetivando aumento de ofertas de vagas e concessão de ‘bolsas creche’ às crianças que não obtenham vagas na rede municipal, e dá outras providências”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Suzano, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.458, de 15 de abril de 2011, de Suzano, autoriza o Poder Executivo a “firmar convênio com escolas particulares de educação infantil, objetivando aumento de ofertas de vagas e concessão de ‘bolsas creche’ às crianças que não obtenham vagas na rede municipal, e dá outras providências”.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.

Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 25/28).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 38, 40/41).

A Câmara Municipal não apresentou informações (fls. 42).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 4.458, de 15 de abril de 2011, de Suzano, que autoriza o Poder Executivo a “firmar convênio com escolas particulares de educação infantil, objetivando aumento de ofertas de vagas e concessão de ‘bolsas creche’ às crianças que não obtenham vagas na rede municipal, e dá outras providências”., tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica o Município de Suzano autorizado a firmar convênio com as escolas particulares de educação infantil, objetivando o aumento de ofertas de vagas, com a concessão de ‘bolsas creches’ às crianças constantes das listas de espera por vagas nas EMEIS e creches conveniadas.

§ 1º. Os interessados em firmar o convênio deverão cadastrar-se junto à Secretaria Municipal de Educação, informando qual a disponibilidade de vagas, preenchendo, no mínimo, os seguintes requisitos:

I – quando tratar-se de escolas particulares, deverá ter autorização de funcionamento ou em processo de autorização.

§ 2º. Os interessados em firmar o convênio deverão declarar que são responsáveis e obrigam-se a:

I – manter sob sua guarda e cuidados o menor, até ser devolvido a uma pessoal de sua família ou responsável;

II – ministrar ensino de qualidade ao aluno, sob supervisão da Secretaria Municipal de Educação, no que lhe couber;

III – encaminhar controle da frequência dos alunos beneficiados da ‘bolsa creche’ à Secretaria Municipal de Educação, mensalmente.

Art. 2º. Havendo demanda, ou seja, se a rede pública mostrar-se insuficiente, a Secretaria Municipal de Educação encaminhará o aluno à cadastrada mais próxima de sua residência, quando no mesmo bairro, ou onde houver vagas.

§ 1º. Tendo como objetivo a distância entre as residências do aluno beneficiado com a ‘bolsa creche’, o estabelecimento credenciado e o percurso do responsável (pai ou mãe) ao seu local de trabalho, fica evidente a desnecessidade e a inviabilidade de competição entre as cadastradas, nos termos do caput do art. 25 da Lei Federal 8.666/93.

§ 2º. A preferência de que trata o caput desse artigo está alicerçada no interesse público de se promover o menor gasto possível, em razão de se tratar de entidades criadas com a finalidade e busca de uma sociedade mais justa e o atendimento social das crianças.

§ 3º. As vagas serão distribuídas à comunidade, obedecendo aos critérios definidos nesta lei, bem como àqueles já utilizados pela Secretaria Municipal de Educação, quando da seleção para a rede pública.

§ 4º. As vagas atenderão às necessidades da Municipalidade de atendimento à demanda existente, devendo ser considerada sempre a disponibilidade orçamentária e financeira para este fim.

Art. 3º. O valor a ser pago por vaga disponibilizada e ocupada, a título de ‘Bolsa Creche’, será aquele baixado pelo Poder Executivo, a cada exercício, através de decreto.

Parágrafo único. O valor será definido através de levantamento e planilha a ser elaborada pela Secretaria Municipal de Educação, considerando sempre como base de cálculo, o custo por vaga criada no sistema próprio.

Art. 4º. Para a realização dos projetos, programas ou ações que visem a efetivar os objetivos do convênio de que trata esta lei, o Poder Executivo promoverá a celebração de contratos, termos e outros instrumentos legais de sua competência.

Art. 5º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 6º. Esta lei entrará em vigor a partir da data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

 Observe-se que a norma impugnada disciplina, essencialmente, aspectos relacionados à gestão do ensino na esfera do Município de Suzano: diretrizes para a realização de convênios; aumento de vagas escolares; concessão de “bolsas creche”; entre outras providências, todas de cunho tipicamente administrativo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental, ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.458, de 15 de abril de 2011, de Suzano.

São Paulo, 24 de julho de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

rbl