Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0066598-19.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Santa Bárbara d’Oeste

Objeto: Lei nº 3.372, de 09 de março de 2012, do Município de Santa Bárbara d’Oeste

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 3.372, de 09 de março de 2012, do Município de Santa Bárbara d’Oeste, que “Dispõe sobre a instituição de melhoria dos meios de transportes públicos no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste e dá outras providências”. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui obrigação que gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º, 47, II e XIV, e 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Santa Bárbara d’Oeste, tendo por alvo a Lei nº 3.372, de 09 de março de 2012, do Município de Santa Bárbara do d’Oeste, “dispõe sobre a instituição de melhoria dos meios de transportes no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste e dá outras providências”.

Sustenta o autor caber exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 245/246).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 252/253).

A Câmara Municipal de Santa Bárbara d’Oeste prestou informações sobre o processo legislativo que deu origem à legislação impugnada (fls. 258/260).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei n. 3.372, de 09 de março de 2012, do Município de Santa Bárbara d’Oeste, que “dispõe sobre a instituição de melhoria dos meios de transportes públicos no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - Fica instituída, através do Poder executivo, a melhoria dos meios de transportes, e a construção de novos pontos de parada.

Art. 2º - A proposta tem como finalidade propor a melhoria do bem estar público, favorecendo àqueles que dependem de meios de transporte coletivo para transitar pelo município.

Art. 3º - O programa prevê modificações nos itinerários dos ônibus, com o objetivo de facilitar a vida dos usuários de transportes público, conforme os seguintes tópicos:

a) disponibilizar um ônibus com mesmo destino a cada 15 minutos;

b)aumentar a frota do ônibus ‘integração’, conforme apontado no art. 5º.

Art. 4º- Privilégio e acessibilidade para os portadores de necessidade especiais para que os mesmos possam transitar normalmente, sem dependência de auxílio e ou dificuldade.

Art. 5º - Embora a linha ‘integração’ apresente-se como uma opção para favorecer o trânsito dos cidadãos, existe necessidade de aumentar sua frota, devido à sua super lotação, a má qualidade do serviço e estado precário dos ônibus.

Art. 6º - Todos os passageiros possuem o direito ao acesso digno de pontos de paradas, preferencialmente com cobertura, banco e localizados em lugares acessíveis.

Art. 7º - Ampliar o número de ônibus da viação na presente cidade, de forma que os mesmos possam contemplar às necessidades dos munícipes.

Art. 8º - Além de proporcionar aos usuários de transporte público o direito de escolha, o ingresso de mais empresas de viação em Santa Bárbara d’Oeste proporcionará mais qualidade de serviço e preço de passagem alcançável.

Art. 9º - O Poder Executivo regulamentará essa lei no prazo de 30 (trinta) dias, a contar de sua publicação.

Art. 10- Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando disposições em contrário”.

 

Como se pode observar, a legislação impugnada visa instituir um programa visando a melhoria dos meios de transportes públicos no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º,  47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com a melhoria dos meios de transportes públicos no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

         Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa para propiciar a melhoria dos meios de transportes públicos no âmbito municipal e/ou fixar as regras para a sua execução.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.372, de 09 de março de 2012, do Município de Santa Bárbara do d’Oeste, “dispõe sobre a instituição de melhoria dos meios de transportes no âmbito do município de Santa Bárbara d’Oeste e dá outras providências”.

 

São Paulo, 26 de junho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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