Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0069707-41.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Vera Cruz

Objeto: Lei nº 2.837, de 13 de março de 2012, do Município de Vera Cruz

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita, da Lei nº 2.837, de 13 de março de 2012, do Município de Vera Cruz, que “institui o Programa para Tratamento Antitabagismo, Álcool e Drogas na Rede Municipal de Saúde e dá outras providências”. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui obrigação que gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47, II e XIV, e 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Prefeita Municipal de Vera Cruz, tendo por alvo a Lei nº 2.837, de 13 de março de 2012, do Município de Vera Cruz, “institui o Programa para Tratamento Antitabagismo, Álcool e Drogas na Rede Municipal de Saúde e dá outras providências”.

Sustenta a autora caber exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Alega, em acréscimo, que as providências determinadas pela lei geram despesas sem indicação dos recursos disponíveis, o que contraria o art. 25 da Carta Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 59/60).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 70/72).

A Câmara Municipal de Vera Cruz prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 73/83).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei n. 2.837, de 13 de março de 2012, do Município de Vera Cruz, que “institui o Programa para Tratamento Antitabagismo, Álcool e Drogas na Rede Municipal de Saúde e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - Fica instituído o Programa Especial  para tratamento antitabagismo, álcool e drogas na Rede Municipal de Saúde.

Parágrafo único. A Secretaria Municipal de Saúde deverá disponibilizar a população de Vera Cruz tratamentos médicos, farmacológicos e acompanhamentos para pessoas que desejam se livrar do vício do cigarro- ‘tabagismo’, álcool e drogas, preferencialmente na Unidade Básica de Saúde do Município (UBS).

Art. 2º - O programa será coordenado por médicos e por profissionais capacitados para tal.

Art. 3º - Qualquer fumante, sem restrição alguma poderá se inscrever:

I- as vagas serão abertas quando a estrutura  estiver pronta;

II- um número de telefone será divulgado pela Secretaria de Saúde para os interessados se cadastrarem.

Art. 4º - As atividades poderão ser individuais ou divididas em grupos dependendo apenas da avaliação médica.

Art. 5º - No primeiro mês, o encontro deverá ser semanal. Nos outros meses, a cada quinze dias. A partir do quarto mês, as reuniões serão apenas para manutenção, portanto poderão ser em datas mais espaçadas, dependendo  de cada caso após anamnese.

Art. 6º - Caberá a Diretoria Municipal da Saúde realizar campanhas por meio dos órgãos de imprensa e distribuição de panfletos visando obter  a adesão de pessoas dependentes do tabaco para tal tratamento, porém o Projeto envolve além da Diretoria Municipal da Saúde também a vigilância Sanitária, podendo se estender à Diretoria de Educação do Município.

Art. 7º - Fica o Poder Executivo autorizado a firmar os convênios necessários para o fiel cumprimento desta lei.

Art. 8º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação revogando as disposições em contrário”.

 

Como se pode observar, a legislação impugnada visa instituir um programa para tratamento antitabagismo, álcool e drogas na rede municipal de saúde do Município de Vera Cruz.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação  dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com as pessoas viciadas no tabagismo, álcool e drogas, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

         Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa para propiciar o tratamento para as pessoas viciadas em tabagismo, álcool e drogas e/ou fixar as regras para a sua execução.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

 

Nota-se, por fim, que a instituição de programa como este, que envolve a disponibilização à população de Vera Cruz, tratamentos médicos, farmacológicos, realização de campanhas  por meio de órgãos de imprensa e divulgação de panfletos, geram despesas para o Município, que não estão cobertas pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.837, de 13 de março de 2012, do Município de Vera Cruz, “institui o Programa para Tratamento Antitabagismo, Álcool e Drogas na Rede Municipal de Saúde e dá outras providências”.

São Paulo, 26 de junho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb