Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Autos nº. 0070116-17.2012.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Guarulhos
Objeto:
inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.986, de 23 de fevereiro de 2012, de
Guarulhos.
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 6.986, de 23 de fevereiro de 2012, que dispõe sobre a vacinação das crianças atendidas pelas creches municipais e conveniadas de Guarulhos.
2) Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).
3) Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.
Colendo Órgão
Especial
Senhor Desembargador
Relator
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 6.986, de 23 de fevereiro de 2012, que dispõe sobre a vacinação das crianças atendidas pelas creches municipais e conveniadas de Guarulhos.
Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa ao art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado.
Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 34/35).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 45/47).
A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 49/56).
É o relato do essencial.
A Lei Municipal nº 6.986, de 23 de fevereiro de 2012, dispõe sobre a vacinação das crianças atendidas pelas creches municipais e conveniadas de Guarulhos.
O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.
A questão é objetiva.
A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, e determina a vacinação das crianças de até três anos atendidas pelas creches municipais e conveniadas do município de Guarulhos, para a prevenção de doenças originadas pelo pneumococo, a ser realizada nas próprias instalações das creches.
Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir a vacinação e seu local é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública. Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e
art. 144).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público.
De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O diploma
impugnado, na prática, invadiu a esfera
da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.
Nem
se chegaria a conclusão diversa a partir da afirmação
de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta
nenhuma imposição para o administrador público.
Em
trabalho publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da
Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267),
disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br),
sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:
“(...)
Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).
Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.
(...)
Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.
(...)
A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado.
Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca, j. 3.2.2011; ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da
Lei Municipal nº 6.986, de 23 de fevereiro de 2012, que dispõe sobre a
vacinação das crianças atendidas pelas creches municipais e conveniadas de
Guarulhos.
São Paulo, 26 de julho de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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