Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0070117-02.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: inconstitucionalidade da Lei nº 6.988, de 27 de fevereiro de 2012, do Município de Guarulhos.

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 6.988, de 27 de fevereiro de 2012, do Município de Guarulhos, que “institui o Programa Municipal de Equoterapia, voltado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes”. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui obrigação que gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47, II e XIV, e 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por alvo a Lei nº 6.988, de 27 de fevereiro de 2012, do Município de Guarulhos, que “institui o Programa Municipal de Equoterapia, voltado a crianças e adultos com deficiência física e /ou mental ou distúrbio comportamental e a vítima de acidentes”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Alega, em acréscimo, que as providências determinadas pela lei geram despesas sem indicação dos recursos disponíveis, o que contraria o art. 25 da Carta Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 37/38).

A Câmara Municipal de Guarulhos prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 44/48).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, para defender o ato impugnado.

 

 

No mérito, a Lei n. 6.988, de 27 de fevereiro de 2012, do Município de Guarulhos, que “institui o Programa Municipal de Equoterapia voltado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou de distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes”, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º - Fica instituído o Programa Municipal de equoterapia, voltado a criança e adultos com deficiência física e/ou mental ou de distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes.

Parágrafo único. O Programa de que trata o caput deste artigo, consiste em método terapêutico e educacional, utilizando o equino como instrumento interdisciplinar nas áreas de saúde, educação e equitação.

Art. 2º - O Programa Municipal de equoterapia será coordenado pelos órgãos competentes da Administração Pública Municipal.

§1º - Para fins do disposto na presente Lei, são considerados deficientes físicos e/ou mentais os portadores de Síndrome de Down, paralisia cerebral, autismo, má-formação do cérebro e problemas congêneres.

§2º - Para fins do disposto na presente  Lei, são considerados distúrbios comportamentais a agressividade e a hiperatividade.

Art. 3º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de dotação orçamentária própria, consignadas em Orçamento e suplementadas se necessário.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

Como se pode observar, a legislação impugnada visa instituir um Programa de Equoterapia voltado para crianças e adultos com deficiência física e /ou mental ou de distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação  dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com as crianças e adultos com deficiência física e /ou mental ou com distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

        

         Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa para propiciar tratamento através de Programa de Equoterapia a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes, e/ou fixar as regras para a sua execução.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a instituição de um programa como este, que envolve a disponibilização de profissionais especializados, locais apropriados e equinos, geram despesas para o Município, que não estão cobertas pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº Lei nº 6.988, de 27 de fevereiro de 2012, do Município de Guarulhos, que “institui o Programa Municipal de Equoterapia, voltado a crianças e adultos com deficiência física e /ou mental ou distúrbio comportamental e a vítima de acidentes”.

São Paulo, 04 de julho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb