Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0071531-35.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Franca

 

Ementa:

1. Ação direta de inconstitucionalidade. Objeto: Lei nº 7.449, de 21 de setembro de 2010, do Município de Franca, que “dispõe sobre a inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate ao ‘bullying’ escolar no projeto pedagógico elaborado pelas escolas públicas e particulares de educação básica do Município”.

2. Lei impugnada originária de projeto de autoria de vereador. Inconstitucionalidade reconhecida. Somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

3. Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

4. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Franca, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 7.449, de 21 de setembro de 2010, que “dispõe sobre a inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate ao ‘bullying’ escolar no projeto pedagógico elaborado pelas escolas públicas e particulares de educação básica do Município”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

O pedido de medida liminar foi indeferido às fls. 103/104.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 113/114).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada fls. 116/119.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei Municipal n.º 7.449, de 21 de setembro de 2010, que “dispõe sobre a inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate ao ‘bullying’ escolar no projeto pedagógico elaborado pelas escolas públicas e particulares de educação básica do Município”, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º - As escolas públicas e particulares de educação básica do município deverão incluir em seu projeto pedagógico medidas de conscientização, prevenção e combate ao bullying escolar.

Parágrafo único- A Educação Básica é composta pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

Art. 2º - Para efeitos desta Lei, considera-se bullying qualquer prática de violência física ou psicológica, intencional e repetitiva, entre pares, que ocorra sem motivação evidente, praticada por um indivíduo ou grupo de indivíduos, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidar, agredir fisicamente, isolar, humilhar, causando dor e angustia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

Parágrafo único- A violência física ou psicológica pode ser evidenciada em atos de intimidação, humilhação e discriminação, entre os quais:

I- Provocara exclusão social e discriminação;

II- Amedrontar ou perseguir com ameaças e agressões físicas ou instigar atos violentos;

III- Submissão do outro, pela força à condição humilhante;

IV- Subtração ou destruição proposital de coisa alheia para humilhar;

V- Extorsão e obtenção forçada de favores sexuais;

VI- Insultos ou atribuição de apelidos vergonhosos ou humilhantes;

VII- Comentários racistas, homofóbicos ou intolerantes quanto às diferenças econômico-sociais, físicas, culturais, políticas, morais e religiosas;

VIII- Exclusão ou isolamento proposital do outro, pela fofoca e disseminação de boatos ou de informações que deponham contra a honra e a boa imagem das pessoas;

IX- Atos que resultem em sofrimento psicológico a outrem, inclusive utilizando-se de meios tecnológicos.

Art. 3º - São objetivos a serem atingidos com as medidas antibullying nas escolas:

I – Promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito aos demais;

II- Prevenir e combater a prática do bullying nas escolas;

III-Capacitar docentes e equipes pedagógicas para implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;

IV- Orientar os envolvidos em situação de bullying, visando a recuperação da auto-estima, o pleno desenvolvimento e a convivência harmônica no ambiente escolar;

V- Envolver a família no processo de construção da cultura de paz nas unidades escolares;

VI- Evitar tanto quanto possível a punição dos agressores, privilegiando mecanismos alternativos como, por exemplo, os “currículos restaurativos” e mudança de comportamento;

Art. 4º - As unidades escolares a que se refere esta Lei manterão histórico próprio das ocorrências de bullying em suas dependências, devidamente atualizado.

Parágrafo único. As ocorrências registradas deverão ser descritas em relatórios detalhados, contendo as providências tomadas em cada caso e os resultados alcançados, que deverão ser enviados periodicamente à Secretaria Municipal de Educação.

Art. 5º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 6º - Na regulamentação desta Lei serão estabelecidas as ações para o cumprimento de suas disposições.

Art. 7º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.  

 

Como se pode observar a legislação impugnada visa instituir um programa para combater o bullying escolar nas escolas públicas e particulares de educação básica do Município de Franca.

 Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com as lamentáveis práticas de bulliyng que ocorrem nas escolas, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

         Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa para combater práticas de bulliyng nas escolas públicas e particulares de educação básica do município e/ou fixar as regras para a sua execução.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

No que se refere, especificamente, a leis que autorizam a Administração a adotar medidas para o combate do “bullying” nas escolas públicas municipais, já decidiu esse Egrégio Tribunal de Justiça no sentido de sua inconstitucionalidade:

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 2.389, de 03 de março de 2010, do Município de Nova Odessa, de iniciativa da edilidade, que ‘autoriza a Administração adotar medidas para combater o denominado ‘bullying’ nas escolas públicas municipais. Inadmissibilidade. Lei de natureza ‘autorizativa’ de medidas que competem à Administração adotar é reservada à iniciativa do Chefe do Executivo. Ofensa aos princípios de reserva de iniciativa e repartição de poderes, de observância obrigatória pelos municípios. Arts. 5º, 47, II e144, da Constituição Estadual ofendidos. Ação procedente.” (ADI nº 990.10.260226-5, Rel. Des. José Santana, j. 17.11.2010).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 7.449, de 21 de setembro de 2010, que “dispõe sobre a inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate ao ‘bullying’ escolar no projeto pedagógico elaborado pelas escolas públicas e particulares de educação básica do Município”.

São Paulo, 28 de junho de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

vlcb