Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 0071532.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.632, de 29 de fevereiro de 2012, de Franca

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 7.632, de 29 de fevereiro de 2012, de Franca, de iniciativa parlamentar que “acrescenta inciso VI no artigo 1º da Lei nº 6.522/2006, que dispõe sobre abertura dos espaços das escolas municipais para atividades da comunidade”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.632, de 29 de fevereiro de 2012, de Franca, de iniciativa parlamentar que “acrescenta inciso VI no artigo 1º da Lei nº 6.522/2006, que dispõe sobre abertura dos espaços das escolas municipais para atividades a comunidade”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa ao art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 64/66).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 96, 104/105).

Em julgamento de agravo regimental interposto pela Câmara Municipal de Franca foi mantida a liminar (fls. 85/91).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 98/101).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 7.632, de 29 de fevereiro de 2012, de Franca, de iniciativa parlamentar que “acrescenta inciso VI no artigo 1º da Lei nº 6.522/2006, que dispõe sobre abertura dos espaços das escolas municipais para atividades da comunidade”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica acrescentado ao artigo 1º da Lei nº 6.522/2005, que dispõe sobre a abertura de espaços das escolas municipais, nos horários sem aulas formais, para as comunidades realizarem atividades sócio-educacionais, culturais, recreativas e de lazer, o seguinte incido VI:

‘art. 1º. omissis

...

VI – as atividades educacionais, de lazer e de retiro espiritual de organizações religiosas.

Art. 2º. As despesas para a consecução desta lei correm à conta de dotações orçamentárias próprias.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, e sinaliza para a ampliação das hipóteses de abertura das escolas municipais, nos horários ociosos, para atividades diversas daquelas relacionadas às atividades ordinárias de ensino.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir quais as atividades a serem desenvolvidas no interior de prédios públicos, inclusive escolas municipais, é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema. Aliás, poderia fazê-lo o Prefeito, autorizando a realização de atividades extraordinárias no âmbito de escolas do Município, inclusive, sem a necessidade de edição de lei, por mero ato administrativo.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Tal afirmação encontra apoio na autorizada doutrina de Hely Lopes Meirelles (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

“(...)

Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado. Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca, j. 3.2.2011; ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.632, de 29 de fevereiro de 2012, de Franca.

São Paulo, 21 de setembro de 2012.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

rbl