Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 0072552-46.2012.8.26.0000

Requerente: Federação Nacional das Empresas Prestadoras de Serviços de Limpeza e Conservação – FEBRAC

Objeto:  inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto Estadual nº 48.326, de 12 de dezembro de 2003

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 5º do Decreto Estadual nº 48.326, de 12 de dezembro de 2003, que adota a variação do IPC- FIPE para reajuste de determinados contratos de serviços celebrados por órgãos da administração direta e indireta. Alegação de violação ao art. 117 da Constituição Estadual por não assegurar a manutenção das condições iniciais da proposta.

2)      Impossibilidade do controle concentrado de constitucionalidade de ato normativo secundário. Inconstitucionalidade indireta ou reflexa. Situação em que a aferição de eventual inconstitucionalidade depende do prévio confronto do dispositivo impugnado com atos normativos infraconstitucionais.

3)      Preliminar de ilegitimidade ativa “ad causam”. À entidade de classe de âmbito nacional legitimada para propor ações diretas de inconstitucionalidade de leis perante o Colendo Supremo Tribunal Federal, não pode ser negada a mesma legitimidade para a propositura de ações do âmbito estadual. Representatividade de entidades e empresas de prestação de serviços.  Não caracteriza composição heterogênea a diversidade do tipo de prestação de serviços, pois dentro da mesma classe econômica ou profissional representada.

4)      Mérito. Impossibilidade de análise de questões de fato no julgamento da ação direta. Não se extrai do confronto direto do ato impugnado violação à garantia da manutenção das condições iniciais da proposta (art. 177 da CE).

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo o art. 5º do Decreto Estadual nº 48.326, de 12 de dezembro de 2003, que adota a variação do IPC- FIPE para reajuste de determinados contratos de serviços celebrados por órgãos da administração direta e indireta.

Sustenta o requerente que o dispositivo normativo é inconstitucional porque o IPC-FIPE não retrata a variação dos custos dos serviços de limpeza e conservação, não permitindo a manutenção das condições iniciais da proposta, garantia prevista no art. 117 da Constituição Estadual.

Não foi deferida a liminar (fls. 68/69).

O Governador do Estado de São Paulo apresenta informações a fls. 96/124 levantando preliminares de não cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, porque o ato normativo impugnado não se trata de decreto autônomo ou primário; de falta de legitimidade ativa ad causam, por se tratar de entidade sindical de âmbito nacional que não se encontra entre os legitimados do rol do art. 90, V da CE, e por ter composição heterogênea, denotando ausência de elemento de conexão entre seus representados. No mérito, afirma que não houve qualquer ofensa ao art. 117 da Constituição Paulista.

 Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado reiterou os termos das informações do Governador do Estado (fls. 176/177).

É o breve relato do ocorrido nos autos.

DAS PRELIMINARES

Do não cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade

A argumentação contida na inicial é de que a inconstitucionalidade decorreria de ofensa ao art. 117 da CE, especificamente quanto à obrigatoriedade, nas contratações de serviços, da manutenção das condições efetivas da proposta em relação ao pagamento.

A norma que se pretende impugnar tem natureza jurídica de ato normativo secundário, uma vez que regulamenta parcialmente o inciso IV do art. 36 e o art. 50, inciso III, ambos da Lei Estadual nº 6.544, dispondo acerca dos critérios de reajustamento de preços de contratos de prestação de serviços celebrados por órgãos da Administração direta, autárquica e fundacional.

A questão relativa ao reajustamento de preços também é disciplinada pelo art. 40, inciso XI, da Lei nº 8.666/93, que institui normas gerais para licitações e contratos da Administração Pública.

O referido dispositivo legal estabelece como um dos requisitos do edital de licitação “cláusula de critério de reajuste, que deverá retratar a variação efetiva do custo de produção, admitida a adoção de índices específicos ou setoriais, desde a data prevista para apresentação da proposta, ou do orçamento a que essa proposta se referir, até a data do adimplemento de cada parcela”.

Forçoso, então, admitir que a presente ação não se mostra como meio viável ao controle concentrado do ato normativo impugnado, pois a analise de sua validade não se pode extrair diretamente de seu confronto direto com norma constitucional estadual.

É pacífico o entendimento de que só é viável a propositura de ação direta de inconstitucionalidade quanto a atos normativos originários, e não quanto a atos regulamentares. Estes são secundários e não ostentam autonomia, ressalvada a hipótese dos denominados “regulamentos autônomos”, de que não se trata, evidentemente, no caso em exame.

O entendimento do C. STF, nesse sentido, é assente, salientando-o a Corte Suprema em várias passagens, como se infere no período transcrito a seguir:

“Ato normativo não autônomo ou secundário. Inadmissibilidade da ação. Inexistência de ofensa constitucional direta. Eventual excesso que se resolve no campo da legalidade. (...). Não se admite ação direta de inconstitucionalidade que tenha por objeto ato normativo não autônomo ou secundário, que regulamenta disposições de lei." (ADI 2.398-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 25-6-07, DJ de 31-8-07).

Ademais, para eventual reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo impugnado seria necessário previamente confrontá-lo com a Lei de Licitações (Lei Federal nº 8666/93), com valoração de fatos para verificar se o índice de reajustamento retrata a variação efetiva do custo de produção ou dos serviços, o que revela a impossibilidade do uso da ação direta, nada obstante seja viável o controle difuso de constitucionalidade do ato normativo.

No controle concentrado de constitucionalidade das leis, promovido por meio da ação direta, a discussão a respeito da legitimidade constitucional da norma é relativamente limitada.

Inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, ou mesmo decorrentes de questões de fato (v.g. se o índice adotado retrata a variação dos custos dos serviços de limpeza e conservação, partindo de premissas situadas no contexto fático) não podem ser aferidas. O único exame que se faz, no processo objetivo, decorre do confronto direto entre o ato normativo impugnado e o parâmetro constitucional (na hipótese, apenas estadual) adotado para fins de controle (STF, ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04; ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241, g.n.; ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546).

A esse propósito, é oportuno averbar a advertência feita pelo i. Min. Celso de Mello, do E. STF:

“A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546, g.n.).

No processo objetivo a questão sobre a qual o Tribunal se debruça é essencialmente jurídica (dúvida ou controvérsia sobre a legitimidade do direito positivo infraconstitucional, em sua perspectiva de confronto imediato com determinado parâmetro constitucional).

Dessa forma, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito por falta de interesse de agir, uma vez que a Ação Direta de Inconstitucionalidade não é o meio adequado para satisfação da pretensão do autor.

Da ilegitimidade ativa ad causam

Caso superada a preliminar anterior deve ser afastada a alegação de ilegitimidade ativa da requerente.

O fato da requerente ser entidade sindical de âmbito nacional não é motivo para o reconhecimento da ilegitimidade ativa por não se encontrar prevista expressamente entre os legitimados do rol do art. 90, V da Constituição Estadual.

Entretanto, a leitura do estatuto social da requerente demonstra que ela é federação representativa de sindicatos e empresas de prestação de serviços de todos os Estados e Municípios, tendo assim abrangência estadual de atuação.

         A propósito o Supremo Tribunal Federal já assentou entendimento que:

“Ação direta de inconstitucionalidade: legitimação ativa: ‘entidade de classe de âmbito nacional’: compreensão da ‘associação de associações’ de classe: revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal. 1. O conceito de entidade de classe é dado pelo objetivo institucional classista, pouco importando que a eles diretamente se filiem os membros da respectiva categoria social ou agremiações que os congreguem, com a mesma finalidade, em âmbito territorial mais restrito. 2. É entidade de classe de âmbito nacional - como tal legitimada à propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, IX) - aquela na qual se congregam associações regionais correspondentes a cada unidade da Federação, a fim de perseguirem, em todo o País, o mesmo objetivo institucional de defesa dos interesses de uma determinada classe. 3. Nesse sentido, altera o Supremo Tribunal sua jurisprudência, de modo a admitir a legitimação das ‘associações de associações de classe’, de âmbito nacional, para a ação direta de inconstitucionalidade” (RTJ 194/859).

Guardadas as devidas proporções, esse entendimento pode ser aplicado para os fins do art. 90, V, da Constituição Estadual.

De outro lado, já se decidiu nesse Tribunal de Justiça Paulista que sendo a entidade legitimada para propor ações diretas de inconstitucionalidade de leis perante o Colendo Supremo Tribunal Federal, não poderia lhe ser negada a mesma legitimidade para a propositura de ações do âmbito estadual. Quem pode o mais, pode o menos (cf. Adin n° 0303328-16.2010 Rel. Des. Roberto Mac Craken).

A atividade econômica ou profissional que a requerente representa refere-se à prestação de serviços. Assim não se verifica assim composição heterogênea, não obstante diversidade das atividades de prestação de serviços.

NO MÉRITO

Na hipótese de afastamento das preliminares, o pedido deve ser julgado improcedente.

O art. 5º do Decreto Estadual nº 48.326, de 12 de dezembro de 2003 estabelece que:

“Artigo 5º - Os contratos de serviços não especificados no artigo 2° deste decreto deverão ser reajustados pela variação do IPC-FIPE - Índice de Preços ao Consumidor, observadas as disposições dos artigos 3º e 4º deste decreto”.

O art. 2º do referido decreto estabelece que:

“Artigo 2º - Caberá ao Comitê de Qualidade da Gestão Pública definir e divulgar fórmulas paramétricas baseadas no IPC-FIPE - Índice de Preços ao Consumidor elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo para reajuste de preços de contratos de serviços, especialmente, de:

I - limpeza, asseio e conservação predial e hospitalar;

II - vigilância e segurança patrimonial;

III - transporte de servidores, sob regime de fretamento contínuo;

IV - nutrição e alimentação”.

Importante ressaltar que a aplicação do IPC/FIPE para reajuste dos preços só ocorrerá para os contratos de serviços não especificados no artigo 2° do Decreto Estadual nº 48.326/2003. Nestes, o índice de reajuste de preços será estabelecido pelo Comitê de Qualidade da Gestão Pública através de fórmulas paramétricas baseadas no IPC-FIPE.

Não se verifica, portanto, qualquer violação a regra estabelecida no art. 117 da Constituição Estadual que determina que nos editais de licitação haja inserção de cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta.

A garantia de manutenção das condições efetivas da proposta diz respeito ao equilíbrio econômico-financeiro ou equação econômico- financeira dos contratos administrativos.

O índice de reajustamento automático de preços, cláusula obrigatória nos contratos administrativos, tem por objetivo buscar recompor automaticamente o equilíbrio econômico-financeiro contratual em face da presente instabilidade que marca economia em nosso país.

Nem sempre, porém, o índice de reajuste de preços consegue retratar as variações econômicas decorrentes de fatos ocorridos durante o contrato. Por este motivo, outros mecanismos legais asseguram a proteção ao equilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos (art. 57, §§ 1º e 2º, art. 65, II, d, §§ 5º e 6º, da Lei nº 8.666/1993).

Desta forma, o contratante com a administração, independentemente do fator de reajuste de preços, tem assegurada a garantia do equilíbrio econômico-financeiro contra os mais diversos tipos de agravos econômicos, tanto decorrentes de ônus que sofra por alterações unilaterais, ou comportamentos faltosos da Administração, quanto contra elevações de preços que tornem mais onerosas as prestações a que esteja obrigado, como, ainda, contra o desgaste do poder aquisitivo da moeda provocado por inflação, em todos os contratos que se prolongam no tempo.

Ainda que se possa cogitar de que o índice eleito para o reajuste dos preços dos contratos não seja o mais adequado, afirmar que viola a garantia constitucional da manutenção das condições da proposta, especificamente em relação ao preço dos serviços prestados, demandaria análise de fato, bem como confronto com a legislação infraconstitucional, inviável em sede de controle direto de constitucionalidade.

Não se pode de plano concluir que o índice previsto no ato normativo impugnado não reproduz a real modificação econômica nos contratos de serviços celebrados por órgãos da administração direta e indireta. Tal valoração depende de fatos econômicos e de sua aplicação no tempo, jamais de seu confronto direto com a norma constitucional.

O exame de questões de fato é vedado em sede de ação direta de inconstitucionalidade, inclusive no caso do processo objetivo de controle no plano estadual.

Isso, na medida em que o art. 125, § 2º, da CR, apenas autoriza o constituinte estadual a instituir “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual”.

A Constituição da República não autorizou, entretanto, que, para examinar a inconstitucionalidade de leis locais, o Tribunal de Justiça examine questões de fato.

Aliás, nem ao Col. STF foi concedida tal autorização, pois o que a Constituição permite, no art. 102, I, a, é que seja examinada, apenas, a “ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

A Constituição da República, por meio de tais dispositivos, criou mecanismos de controle abstrato, e não concreto, sobre a constitucionalidade das leis.

Daí o entendimento absolutamente pacífico no sentido de que, no processo objetivo, a cognição da Corte está limitada ao confronto direto entre a lei e a norma constitucional indicada como parâmetro de controle, sendo inviável estender esse exame à análise de inconstitucionalidades reflexas ou às questões de fato.

Confira-se, no Col. STF:

“(...)

A Constituição da República, em tema de ação direta, qualifica-se como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o STF. (...). O controle normativo abstrato, para efeito de sua valida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da CF. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional (...) (ADI 1.347-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 1º-12-1995). No mesmo sentido: ADPF 93-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009; ADI 3.376, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-6-2005, Plenário, DJ de 23-6-2006. (g.n.)

(...)”

Em síntese, não se pode declarar a inconstitucionalidade da lei com base em projeção concreta quanto aos fatos, no sentido de que a lei poderá provocar, em sua aplicação, defasagem entre o preço e o valor dos serviços prestados.

Por fim, importante ressaltar que o reajuste ou recomposição de preços no contrato, independentemente do índice adotado, não anula a garantia constitucional e legal da revisão dos preços fundada na proteção ao equilíbrio econômico-financeiro.

 Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da extinção do processo sem resolução do mérito por falta de interesse de agir (adequação) em razão do não cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, que, na hipótese de análise do mérito, deve ser julgada improcedente.

 

São Paulo, 17 de outubro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

 

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