Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº.  0083158-36.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei nº 7.003, de 13 de março de 2012, do Município de Guarulhos.

 

Ementa: Lei nº 7.003, de 13 de março de 2012, do Município de Guarulhos que garante formação “em nível superior para todos os docentes da Educação Infantil, em exercício nas Entidades Conveniadas do Município”. Lei de iniciativa do Legislativo. Atividade própria do Executivo. Vício de iniciativa.    Inconstitucionalidade verificada.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Cuida-se de ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.003, de 13 de março de 2012, do Município de Guarulhos, que garante formação “em nível superior para todos os docentes da Educação Infantil, em exercício nas Entidades Conveniadas do Município”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Aponta inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, e ofensa ao princípio da separação dos poderes.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex tunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 45).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 55/63), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 66/67).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Esta é a redação da impugnada norma, no que interessa:

Art. 1º Fica acrescentado ao art. 10 da Lei nº 6.908, de 15 de setembro de 2011, o seguinte parágrafo único:

Parágrafo único. Será garantida, a partir do próximo ano escolar, a oportunidade de formação inicial em nível superior para todos os docentes da Educação Infantil, em exercício nas Entidades conveniadas do Município, por meio de parcerias a serem estabelecidas entre a Secretaria de Educação e as Universidades e Institutos Superiores de Educação, conforme as disposições do artigo 62 da Lei Federal de Diretrizes e bases da educação nº 9.394/1996’

Art. 2º Fica revogado o artigo 11 e seu parágrafo único, da Lei nº 6.908/11.

Art. 3º O caput do artigo 5º da lei Municipal nº 6.908/11, passa a contar com a seguinte redação:

‘Art. 5º Mediante a celebração de convênio, a Prefeitura concorrerá com o fornecimento de recursos financeiros, materiais, cooperação técnica e pedagógica junto às instituições conveniadas’.

Art. 4º Fica expressamente revogado o parágrafo único do artigo 15 da Lei nº 6.908, de 15 de setembro de 2011, mantendo-se inalterado o caput.

Art. 5º As despesas com a execução desta Lei deverão ser consignadas em orçamento e suplementadas se necessário.”

Resulta claro, da simples leitura do texto legal, que o Poder Legislativo adentrou na competência material e exclusiva do Poder Executivo, pois, claramente, emitiu comando que interfere na administração municipal, ao editar lei que garante formação “em nível superior para todos os docentes da Educação Infantil, em exercício nas Entidades Conveniadas do Município”.

Assim, em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização, direção dos serviços públicos.

Não há dúvida que a criação e a forma de prestação destes serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do processo legislativo, São Paulo: Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o seja para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., p. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, p. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair, do Prefeito, o exame da conveniência e da oportunidade quanto à formação dos docentes da Educação Infantil em exercício nas Entidades Conveniadas do Município. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada ao Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, II e XIV, da mesma Carta).

Com efeito, ao Executivo cumpre, com exclusividade, formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também de celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Des. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Des. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Des. Paulo Shintate).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.003, de 13 de março de 2012, do Município de Guarulhos.

São Paulo, 19 de julho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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