Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0086852-13.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Gália

Objeto: inconstitucionalidade da Emenda à Lei Orgânica Municipal de Gália nº 06, de 10 de abril de 2012

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda à Lei Orgânica Municipal de Gália nº 06, de 10 de abril de 2012, que fixa a exigência de “autorização legislativa” para a alienação de bens móveis.

2)      Contrariedade ao disposto no art. 19, IV, c.c. o art. 144 da Constituição Paulista. Exigência que se limita, nos termos da disciplina constitucional, à alienação de bens imóveis.

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Emenda à Lei Orgânica Municipal de Gália nº 06, de 10 de abril de 2012.

Sustenta o Senhor Prefeito Municipal, em síntese, que referido ato normativo, ao estabelecer nova disciplina relativamente à alienação de bens públicos, teria contrariado o art. 5º e o art. 144 da Constituição Paulista, tendo em vista que o art. 22, XXVII da CF confere competência privativa à União para legislar a respeito de normas gerais de licitação, estando tal matéria disciplinada na Lei Federal nº 8.666/93.

Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 36/37).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 44 e 46/48).

A Presidência da Câmara Municipal deixou de prestar informações (fls. 49).

É o relato do essencial.

A Emenda à Lei Orgânica Municipal de Gália nº 06, de 10 de abril de 2012, que “dispõe sobre a alteração da redação do inciso II, do artigo 103, da Lei Orgânica do Município de Gália”, tem a seguinte redação (fls. 20):

“(...)

Art. 1º. O inciso II, do artigo 103, da Lei Orgânica do Município de Gália, Estado de São Paulo, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘art. 103....

II – quando móveis, dependerá de prévia autorização legislativa e licitação;

Parágrafo único. Em caso de doação, permitida exclusivamente para fins de interesse social, devidamente justificado, permuta e ações vendidas em Bolsa de Valores, conforme legislação específica será dispensada a licitação.

(...)

Em outras palavras, o legislador municipal passou a conferir disciplina específica à questão relacionada à alienação de bens móveis no Município de Gália.

A exigência decorrente da alteração legislativa consiste doravante, especificamente, na necessidade de autorização legislativa para a alienação de bens móveis, que não era necessária na redação anterior do dispositivo impugnado.

Tal exigência contraria o disposto no art. 19, IV da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

Cumpre lembrar que os Municípios, na sua organização, devem observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição do Estado, nos termos do art. 29, “caput” da CF.

Os casos em que a autorização legislativa se faz necessária são aqueles – e somente aqueles – expressamente indicados na Constituição do Estado, no art. 19, incisos IV e V: (a) alienação e cessão de direitos reais relativos a bens imóveis; (b) recebimento de doações com encargo; (c) cessão ou concessão de uso de bens imóveis do poder público para particulares.

Como a exigência de autorização legislativa é uma restrição constitucional ao princípio da separação de poderes, caracterizada como manifestação do sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), deve, necessariamente, ser interpretada restritivamente.

Em outras palavras, se fora das hipóteses constitucionalmente previstas, a lei dispõe sobre autorização para a prática, pela administração, de ato administrativo que dela prescinde isso significa invasão da esfera de competências do Executivo por ato do Legislativo, em clara violação do princípio da separação de poderes.

Decidir pela alienação de bens móveis, diversamente daquilo que foi estabelecido pelo legislador municipal no caso em exame, é matéria essencialmente relacionada à atividade do Poder Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

Em outras palavras, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito da realização de atos de alienação de bens imóveis.

Esse entendimento já foi assentado, em mais de uma oportunidade, pelo Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça:

“(...)

Ementa: Constitucional – Ação direta de inconstitucionalidade – Expressão ‘autorização legislativa' presente no inciso I do art. 135 da Lei Orgânica do Município de Guatapará, a dispor sobre a alienação de bens móveis da Municipalidade – Ingerência do Legislativo na Administração local – Maltrato ao princípio da independência dos Poderes – Ofensa aos arts. 5.o caput; 37; 47, II e XIV; 111 e 144 da Constituição do Estado - Precedente - Inconstitucionalidade declarada. (TJ/SP, ADI n.º 133.640.0/6-00, Relator designado Des. IVAN SARTORI, j. em 19/12/2007, m.v.)

(...)

Esse mesmo entendimento foi adotado pelo Col. Órgão Especial quando do julgamento da ADI 0023373-80.2011.8.26.0000, rel. Walter de Almeida Guilherme, j. 14/09/2011.

Cumpre lembrar ainda, invocando o magistério de J. H. Meirelles Teixeira, que “A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que o fizer” (Cf. ‘Curso de Direito Constitucional’, Forense Universitária, Organizado e atualizado por Maria Garcia, Rio de Janeiro, 1991, 1.ª edição, p. 592).

Em outros termos, é possível afirmar que exceções ao princípio da separação de poderes devem ser afirmadas exclusivamente pelo próprio poder constituinte originário, pois sua ampliação pelo constituinte reformador ou mesmo pelo legislador infraconstitucional mostra-se incompatível com a Constituição.

Vale lembrar, por último e não menos importante, que a abertura da causa de pedir, nas ações diretas, permite o reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento distinto daquele que foi apontado na inicial, não havendo obstáculo algum para o acolhimento da ação pelos motivos indicados neste parecer.

A ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

Adota-se, nesse passo, a denominada “abertura da causa de pedir” no controle concentrado de constitucionalidade.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido do acolhimento da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Emenda à Lei Orgânica Municipal de Gália nº 06, de 10 de abril de 2012, tendo em vista sua contrariedade ao art. 19, IV, c.c. o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

São Paulo, 26 de setembro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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