Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0086855-65.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Gália

Objeto: Lei nº 2.135, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Gália

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Gália, da Lei nº 2.135, de 14 de fevereiro de 2012, que “DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DE PONTO DE TÁXI NO MUNICÍPIO DE GÁLIA/SP E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. Projeto proposto e retirado pelo Poder Executivo, mas mantido pelo Poder Legislativo, com usurpação das atribuições do Prefeito. Violação do princípio da separação dos poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da CE). Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal de Gália da Lei nº 2.135, de 14 de fevereiro de 2012,  daquele Município, que “DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DE PONTO DE TÁXI NO MUNICÍPIO DE GÁLIA/SP E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

Sustenta o autor que a lei padece de inconstitucionalidade formal. Foi projetada, no âmbito do Poder Executivo, mas, antes que fosse submetida à votação, foi retirada. O Presidente da Câmara de Vereadores indeferiu a retirada do projeto de lei e o manteve para votação, configurando vício de iniciativa e ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Aponta como violados os artigos 5º, 47, XI e XVIII, e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 46/48). Pelo mesmo despacho, foram dispensadas as informações.

A Procuradoria-Geral do Estado não foi citada.

É a síntese do necessário.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, §2º, da Constituição Estadual.

No mérito, o pedido deve ser examinado pelo cotejo da lei em análise com os arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da Constituição Estadual.

A Lei nº 2.135, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Gália, que “DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DE PONTO DE TÁXI NO MUNICÍPIO DE GÁLIA/SP, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º - Fica acrescido o inciso VI ao artigo 1º da Lei Municipal 1.893 de 15 de janeiro de 2008, para constar, além dos já existentes, o seguinte ponto para atividade de taxista:

(...)

VI – Ponto de táxi com 03 (três) vagas, na altura do numeral 1.020, da Avenida Martiniano Inácio Gonçalves, Bairro – Sta Terezinha, para veículos com até 05 (cinco) passageiros.”

 

O projeto foi apresentado pelo Prefeito Municipal, mas foi retirado, em tempo oportuno. O Presidente da Câmara indeferiu o pedido de retirada e o manteve para votação, e como bem articulado na decisão que concedeu a liminar, “é como se ele não o tivesse remetido à Câmara de Vereadores. Esta, por sua Presidência, indeferindo o pedido, a teor de ser o mesmo ‘de interesse social, pois trata-se de criação de três postos de trabalho em nossa cidade de Gália/SP’, encampou-o, tornando-o seu, isto é, de sua iniciativa”.

Assim, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Presidente da Câmara, que se tornou autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos.

Não há dúvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do processo legislativo, São Paulo: Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

 

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o seja para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., p. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, p. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair, do Prefeito, o exame da conveniência e da oportunidade da maneira como deve ser feito o controle do número de ponto de taxi e de taxistas. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual).

Com efeito, ao Executivo cumpre, com exclusividade, formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também de celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Des. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Des. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Des. Paulo Shintate).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.135, de 14 de fevereiro de 2012, do Município de Gália.

São Paulo, 11 de junho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

fjyd