Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0092066-82.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Objeto: Lei Municipal nº 5.305, de 23 de abril de 2012, de Catanduva

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.305, de 23 de abril de 2012, de Catanduva, de iniciativa parlamentar.

2)      Não ocorrência de violação da separação de poderes (art. 2º da CR). A fiscalização quanto ao cumprimento das leis é inerente ao Poder de Polícia exercido pela Administração Pública. Entendimento diverso, levado às últimas consequências, esvaziaria por completo a iniciativa do Poder Legislativo para o processo de formação das leis, contrariando o art. 61da CR.

3)      Pedido de declaração de inconstitucionalidade com fundamento no art. 25 da Constituição do Estado. Hipótese em que o alegado aumento de despesa, caso ocorra, não decorrerá diretamente da lei. Questão de fato. Inviabilidade de exame em sede de ação direta, sob pena de contrariedade aos limites impostos ao processo objetivo no plano estadual, por força do art. 125, § 2º, da CR.

4)      Parecer pela improcedência da ação direta.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo como alvo a Lei Municipal nº 5.305, de 23 de abril de 2012, de Catanduva, de iniciativa parlamentar.

Alega o autor a ocorrência de desrespeito à iniciativa legislativa privativa do Chefe do Executivo, de aumento de despesa sem indicação de receita, de violação do princípio da legalidade, e de contrariedade a dispositivos da Lei Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade (art. 5º, 25, 111 e 144 da Constituição do Estado).

Foi determinada, liminarmente, a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 22/23).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 29/34).

É o relato do essencial.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, para defender o ato impugnado.

No mérito, a ação deverá ser julgada improcedente.

A Lei Municipal nº 5.305, de 23 de abril de 2012, de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que “dá nova redação ao artigo 3º e artigo 4º, ‘caput’, e acrescenta os parágrafos 4º e 5º, no art. 4º, todos da Lei nº 4.509, de 17 de dezembro de 2007, e outras providências”, cujo texto integral está juntado às fls. 16/17, prevê, exclusivamente e em síntese, que cabe aos órgãos competentes da Municipalidade realizar a fiscalização em casos de descumprimento do texto originário, da Lei nº 4.509, de 17 de dezembro de 2007.

A Lei nº 4.509, de 17 de dezembro de 2007, por sua vez, (cópia cf. fls. 18/20), conforme a respectiva rubrica “dispõe sobre limpeza de quintais, pátios terrenos e construções em estado de abandono, situados na zona urbana e dá outras providências”.

Em outras palavras, a lei impugnada apenas aperfeiçoou aspectos relacionados ao exercício do Poder de Polícia, especificamente quanto à fiscalização referente ao cumprimento de outra lei, de autoria, ao que consta dos autos, do próprio Chefe do Poder Executivo.

Não houve, a rigor, criação de novas “obrigações” para órgãos da Municipalidade, mas apenas detalhamento e aperfeiçoamento do sistema de fiscalização já existente.

Mas não é só.

Resta analisar se existe a inconstitucionalidade apontada na inicial, consubstanciada na alegada ofensa à iniciativa privativa do Chefe do Executivo, na falta de indicação de receitas, e no desrespeito ao princípio da legalidade, assinalados, em conformidade com o autor da ação, nos artigos 5º, 25, 111 e 144 da Constituição Paulista.

Em que pese nosso respeito pelo entendimento adotado pelo autor, a norma impugnada não é inconstitucional, e caso seja julgada procedente a ação direta, isso significará contrariedade aos art. 2º, 61, 37, e 125, § 2º, da Constituição da República, pelos motivos expostos a seguir.

Para a construção de toda a argumentação contida na inicial o autor parte da premissa, mais ou menos explícita, de que na fiscalização e na aplicação da lei o Município deverá aparelhar melhor seus órgãos de fiscalização.

Em outras palavras, deixa entrever que na aplicação da lei, indiretamente, poderá ocorrer o aumento de despesas para as quais a lei não indica receitas, pois deverá ser criado órgão de fiscalização, ou haverá alteração na estrutura ou rotina de trabalho dos órgãos de municipais de controle já existentes.

Com a devida vênia, se esse raciocínio estiver correto, doravante restará completamente eliminada a iniciativa legislativa parlamentar.

Isso, na medida em que, como toda lei editada pelo Poder Legislativo exige fiscalização (inerente ao Poder de Polícia da Administração Pública), chegar-se-á à conclusão de que sempre, inexoravelmente, a iniciativa do processo de formação das leis deve partir do Poder Executivo.

Esse raciocínio, ao esvaziar a iniciativa parlamentar para o processo de formação das leis, contraria o art. 61 da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 24 da Constituição Paulista), bem como contraria o art. 2º da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 5º da Constituição Estadual).

O equívoco dessa construção, com absoluto respeito, fala por si mesmo.

O entendimento pacificado há muito no âmbito do Col. STF, intérprete último da Constituição, é de que reserva de iniciativa é matéria de direito estrito e não pode ser interpretada extensiva ou analogicamente.

E a situação tratada nestes autos não se encaixa em nenhuma das hipóteses taxativamente tipificadas, de reserva de iniciativa do Poder Executivo, previstas no art. 61, § 1º, da CR (reproduzidas no art. 24, § 2º, da Constituição Paulista), aplicáveis, por força do princípio da simetria, ao processo legislativo estadual ou municipal.

Confira-se o precedente a seguir transcrito, aplicável ao caso em exame mutatis mutandis:

“(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado. (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

Assim, se não há regra expressa prevendo reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, afirmar que ela existe significa contrariar o art. 61, da CR, que estabelece a iniciativa de parlamentares para o processo de formação das leis e os casos limitados de reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, bem como contrariar o art. 2º da CR, dando ao princípio da separação de poderes alcance que ele não tem.

Mas não é só.

Observe-se que a lei não cria diretamente órgão administrativo para fins de fiscalização, nem estabelece rotina para o controle, por parte do Poder Público local, quanto ao seu cumprimento.

Dessa forma, saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, para fins de aplicação do art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo, é uma questão de fato.

Mais ainda é possível afirmar.

Saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, é, em verdade, uma conjectura relativamente aos fatos.

Mas o exame de questões de fato (ou de conjecturas relativamente aos fatos) é vedado em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Isso, porque o art. 125, § 2º, da CR apenas autoriza o constituinte estadual a instituir “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual”.

Em outras palavras, por força do art. 125, § 2º, da CR, é legitimada a previsão na Constituição do Estado da ação direta de inconstitucionalidade estadual, por força da qual o Tribunal de Justiça pode examinar a compatibilidade entre leis locais e a Carta Estadual.

A Constituição da República não autorizou, entretanto, que para examinar a inconstitucionalidade de leis locais no processo objetivo, o Tribunal de Justiça examine questões de fato.

Aliás, nem ao Col. STF foi concedida tal autorização, pois o que a Constituição permite à Suprema Corte, no art. 102, I, a, é que seja examinada, apenas, a “inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

A Constituição da República, por meio de tais dispositivos, criou mecanismos de controle abstrato, e não concreto, sobre a constitucionalidade das leis.

Daí o entendimento absolutamente pacífico no sentido de que, no processo objetivo, a cognição da Corte está limitada ao confronto direto entre a lei e a norma constitucional indicada como parâmetro de controle, sendo inviável estender esse exame à análise de inconstitucionalidades reflexas ou às questões de fato.

Confira-se, no Col. STF:

“(...)

A Constituição da República, em tema de ação direta, qualifica-se como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o STF. (...). O controle normativo abstrato, para efeito de sua valida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da CF. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional (...) (ADI 1.347-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 1º-12-1995). No mesmo sentido: ADPF 93-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009; ADI 3.376, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-6-2005, Plenário, DJ de 23-6-2006. (g.n.)

(...)”

Em síntese, a lei não contraria dispositivos da Constituição do Estado e não é correta, em nosso sentir, a afirmação de que há inconstitucionalidade em seu texto.

Assim, considerando que nada há no ato normativo indicando, diretamente, a criação de órgãos ou cargos públicos, ou mesmo a modificação de rotinas de fiscalização, caso seja declarada a inconstitucionalidade da lei com base em mera possibilidade de projeção concreta quanto aos fatos (suposição de aumento de despesas), isso significará contrariedade ao art. 125, § 2º, da CR.

Diante do exposto, nosso parecer é pela rejeição da ação direta, reconhecendo-se a constitucionalidade da Lei Municipal nº 5.305, de 23 de abril de 2012, de Catanduva.

São Paulo, 03 de junho de 2012.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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