Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0101648-09.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Objeto: Lei nº 7.032, de 17 de abril de 2012, do Município de Guarulhos

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 7.032/2012, do Município de Guarulhos, que “cria o Programa de Hidroponia Popular- PHP e dá outras providências”. Iniciativa parlamentar. Controle da Administração.  2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (arts. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Paulista). 3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receita (art. 25 da Constituição Paulista).  4) Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por alvo a Lei Municipal                       n.º n. 7.032/2012, do Município de Guarulhos, que “cria o Programa de Hidroponia Popular- PHP e dá outras providências”.

 Sustenta o autor que a referida legislação de iniciativa parlamentar é inconstitucional por ter disciplinado matéria que é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, a quem cabe disciplinar ações governamentais, além do que, cria despesas sem indicar a respectiva fonte.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 37).

O Procurador-Geral do Estado declinou da defesa da lei, anotando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 47/48).

A Câmara Municipal de Guarulhos prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 50/57).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

        No mérito, em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

         Este é o texto da vergastada norma:

"Art. 1º - Fica instituído o Programa de Hidroponia Popular-PHP, no âmbito do Município de Guarulhos, com o objetivo de fomentar o cultivo hidropônico em pequenas e médias áreas, criando uma um geohidrocultura auto – sustentável.

Art. 2º - Para atender os fins previstos nesta Lei, o Município de Guarulhos poderá celebrar parcerias com empresas e entidades sem fins lucrativos visando o cultivo hidropônico.

Parágrafo único. Nas referidas parcerias necessariamente, haverá cláusula que permita a reversão de, no mínimo 20% (vinte por cento), da produção financiada ao Município para destinação às creches e estabelecimentos de ensino público municipais.

Art. 3º - As despesas decorrentes da presente lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento e suplementadas se necessário.

Art. 3º - As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento e suplementadas se necessário.

Art. 4º - O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no que couber, no prazo de 60 (sessenta dias) após a sua publicação.

Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

         Como se pode observar, a lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, na medida em que instituiu o Programa de Hidroponia Popular no Município.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação  dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas como a da espécie.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para instituir determinado programa é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 456).

 

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para instituir um programa de hidroponia popular e/ou fixar as regras para a sua execução.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. o artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com a disposição do artigo 25 da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição de programa como este gera despesas para o Município, que não estão cobertas pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 7.032, de 17 de abril de 2012, do Município de Guarulhos, que “cria o Programa de Hidroponia Popular-PHP e dá outras providências”.

São Paulo, 09 de outubro de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb