Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0110004-90.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Itatiba

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei nº 4.471, de 04 de abril de 2012, do Município de Itatiba

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 4.471, de 04 de abril de 2012, do Município de Itatiba, que “determina a instituição das áreas escolares de segurança nas ruas do entorno das escolas públicas e particulares no Município de Itatiba, e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que estabelece ação concreta à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º; 47; II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 4.471, de 04 de abril de 2012, do Município de Itatiba, que “determina a instituição das áreas escolares de segurança nas ruas do entorno das escolas públicas e particulares no Município de Itatiba, e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto de lei que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois, foi aprovado tacitamente.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Argumenta, também, que a Lei em questão cria despesa pública sem a devida indicação dos recursos disponíveis para dar atendimento a tais encargos.

O pedido de medida liminar foi deferido (fls. 20).

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações (fls. 20/27).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 40/41).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente. Vejamos.

A Lei nº 4.471, de 04 de abril de 2012, do Município de Itatiba, que “determina a instituição das áreas escolares de segurança nas ruas do entorno das escolas públicas e particulares no Município de Itatiba, e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - Fica instituída a Área Escolar de Segurança, que tem por finalidade assegurar a tranquilidade de alunos, servidores, funcionários, pais e responsáveis, mediante ações ordenadas do Poder Público Municipal, de forma a contribuir para a melhor realização dos objetivos das instituições educacionais públicas e privadas.

Art. 2º - Entende-se por Área Escolar de Segurança as ruas e outros espaços públicos no entorno, num raio de 100 (cem) metros dos limites das escolas públicas.

Art.3º - A área a que se refere o art. 2º da presente Lei deverá ser indicada por meio de placas com a mensagem: “Área Escolar de Segurança”.

Art. 4º - O Poder Executivo Municipal procederá à intensificação das seguintes ações na área especificada no art. 2º desta Lei:

I-ampliação e melhoria da iluminação pública;

II- pavimentação de ruas;

III- limpeza pública;

IV- limpeza de terrenos e edificações abandonadas;

V- poda de árvores;

VI- implantação e manutenção de placas indicativas de paradas de ônibus;

VII- implantação e manutenção de abrigos de passageiros nas paradas de transportes coletivos;

VIII- fiscalizar o comércio existente, em especial, o ambulante, a fim de coibir a comercialização de produtos ilícitos;

IX- coibir a exposição ou distribuição de desenhos, pinturas, gravuras, estampas, escritas ou qualquer objeto pornográfico ou obsceno;

X- proceder à fiscalização intensiva do comércio em geral e do acesso de criança e de adolescentes.

Art. 5º - Caberá à Diretoria Municipal de Trânsito a regulamentação do uso de vias situadas no entorno dos estabelecimentos de ensino público, impondo controle rigoroso a:

I- limites de velocidade;

II- sinalização adequada;

III- ordenamento e controle de estacionamento e parada;

IV- faixas de travessia de pedestres;

V – semáforos e redutores de velocidade, quando for o caso;

Parágrafo único- A Diretoria Municipal de Trânsito, em consonância com a Secretaria Municipal de educação, fomentará projetos, programas e campanhas de Educação e segurança de Trânsito no âmbito das escolas públicas e provadas municipais.

Art. 6º - O Poder Executivo Municipal, por intermédio da Secretaria Municipal de Obras e Meio Ambiente, estabelecerá controle rigoroso da poluição sonora mediante fiscalizações sistemáticas na área indicada.

Art. 7º - A Secretaria Municipal de Educação poderá promover, em parceria com a Guarda Municipal de Itatiba, Conselho Municipal de Educação, Conselho Municipal do Direito da Criança e do Adolescente, Grupo Gestor de Escolas Públicas Municipais, Conselhos Escolares, Grêmios Estudantis; Associações de Pais e Entidades Organizadas da Sociedade Civil, ações educativas que contribuam com a prevenção a violência e criminalidade local.

Parágrafo Único- Fica a cargo do Poder executivo Municipal a promoção de parcerias com órgãos de segurança pública federais e estaduais para fins de implementação dos objetivos desta Lei.

Art. 8º - O Chefe do Poder Executivo Municipal, estabelecerá as medidas necessárias para viabilizar a aplicação desta lei.

Art. 9º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário”.

 

Como se pode observar, a referida lei institui e delimita área escolar de segurança, com o objetivo de garantir, através de ações sistemáticas e previstas em lei, a tranquilidade de alunos, servidores, funcionários, pais e responsáveis para a realização dos objetivos fins das instituições educacionais públicas e privadas.

 

 

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

De fato, o regime jurídico das políticas públicas é regulado por lei, cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executá-las.

O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição Federal, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se, no caso sob exame, que a Câmara de Vereadores de Itatiba aprovou a Lei n.º 4.471/2012, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, não apenas autorizando o Executivo a certas condutas, mas impondo-lhe obrigações, com nítida vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

Numa análise mais acurada da questão tratada, constata-se que os direitos cuja proteção se cogitou na norma hostilizada são mais amplamente garantidos pela Constituição Federal e sem imposição dos requisitos previstos na mesma lei.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo, quando muito, formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis, criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Deve-se destacar, diante da legislação versada, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendentes à atuação concreta e referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura [...] A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

E, sobre o tema em foco, destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ:

 “Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

 Restando caracterizada a violação de preceitos contidos na Constituição do Estado de São Paulo, a saber, aos arts. 5°, 47, incs. II e XIV e 144, merece a Lei n° 4.471/2012, do Município de Itatiba, ser extirpada do mundo jurídico.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.471, de 04 de abril de 2012, do Município de Itatiba, que “determina a instituição das áreas escolares de segurança nas ruas do entorno das escolas públicas e particulares no Município de Itatiba, e dá outras providências”.

São Paulo, 24 de julho de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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