Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0117035-64.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei nº 7.036, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 7.036, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos, que “determina a identificação obrigatória, através de placas informativas, de áreas de preservação ambiental, no âmbito do Município de Guarulhos”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que estabelece ação concreta à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa sem indicação de recurso disponível. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47; II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 7.036, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos que “determina a identificação obrigatória, através de placas informativas, de áreas de preservação ambiental, no âmbito do Município de Guarulhos”.

O autor noticia que o projeto de lei que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois, foi aprovado tacitamente.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, invadindo a esfera de gestão administrativa, divisando ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Argumenta, também, que a Lei em questão cria despesa pública sem a devida indicação dos recursos disponíveis para dar atendimento a tais encargos.

O pedido de medida liminar foi deferido (fls. 40/41).

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações (fls. 54/62).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 51/52).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente. Vejamos.

A Lei nº 7.036, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos, que “determina a identificação obrigatória, através de placas informativas, de áreas de preservação ambiental, no âmbito do Município de Guarulhos”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica determinada a identificação obrigatória através de placas informativas, em todas as áreas de preservação ambiental, no Município de Guarulhos.

§1º - Compete ao Poder Executivo Municipal, através de seus canais competentes a identificação das áreas de preservação ambiental para os fins de que trata este artigo.

§2º - As placas de identificação devem ser colocadas em lugares visíveis ao público e conterão os seguintes dados:

I- a identificação da área, citando a Lei que a considera de preservação ambiental;

II- o tamanho da área preservada;

III – o limite de acesso;

IV- órgão responsável pela fiscalização;

V- informação quanto à sanções em caso de desobediência às normas;

VI- endereços, telefones e e-mails para possíveis denúncias e reclamações.

Art. 2º - Para os efeitos desta Lei são consideradas áreas de preservação ambiental, as unidades de conservação descritas no art. 2º, inciso I, da Lei Federal n. 9.985/00, que trata do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

Art. 3º - A observância do disposto no art. 1º, desta Lei, no que tange a fiscalização do seu cumprimento, compete ao Poder Executivo Municipal, que editará as medidas punitivas cabíveis, através de decreto regulamentador.

Art. 4º - As despesas decorrentes com a execução desta Lei correrão à custa de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º - A presente Lei entra em vigor na data de sua publicação”.    

 

Como se pode observar, a referida lei obriga o Poder Público  a identificar, através de placas informativas, todas as áreas de preservação ambiental do Município de Guarulhos, nos moldes por ela especificado.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

“Art. 25 – Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

De fato, o regime jurídico das políticas públicas é regulado por lei, cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executá-las.

O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição Federal, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se, no caso sob exame, que a Câmara de Vereadores de Guarulhos aprovou a Lei n.º 7.036/2012, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, impondo ao Executivo obrigações, com nítida vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo, quando muito, formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis, criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Deve-se destacar, diante da legislação versada, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendentes à atuação concreta e referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura [...] A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

E, sobre o tema em foco, destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ:

 “Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

 Restando caracterizada a violação de preceitos contidos na Constituição do Estado de São Paulo, a saber, aos arts. 5°, 47, incs. II e XIV e 144, merece a Lei n° 7.036/2012, do Município de Guarulhos, ser extirpada do mundo jurídico.

Finalmente, impõe-se observar que a imposição de obrigações à Administração (demarcação, emplacamento, fiscalização), instituída pela lei impugnada, traz ônus ao Erário. Tem-se aumento dos encargos do orçamento, resultante da necessidade de cumprimento dessas obrigações.

 Em casos similares esse egrégio Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art. 25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADI 18.628-0, ADI 13.796-0, ADI 38.249-0, ADI 36.805.0/2, ADI 38.977.0/0).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.036, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos que “determina a identificação obrigatória, através de placas informativas, de áreas de preservação ambiental, no âmbito do Município de Guarulhos”.

 

São Paulo, 07 de agosto de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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