Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0117036-49.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos, que “PERMITE À SERVIDORA PÚBLICA MUNICIPAL DE GUARULHOS DEIXAR DE COMPARECER AO SERVIÇO, SEM PREJUÍZO DOS VENCIMENTOS, NO PRIMEIRO DIA DE AULA DOS FILHOS MENORES DE CINCO ANOS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. Projeto de lei de Vereador. Matéria, contudo, de iniciativa privativa do Prefeito. Alegada ofensa ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º, 5º, 47, II, da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, daquele município, que “PERMITE À SERVIDORA PÚBLICA MUNICIPAL DE GUARULHOS DEIXAR DE COMPARECER AO SERVIÇO, SEM PREJUÍZO DOS VENCIMENTOS, NO PRIMEIRO DIA DE AULA DOS FILHOS MENORES DE CINCO ANOS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 41).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 55/60).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 51/53).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pesem os elevados propósitos que a inspiraram, a Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos é, de fato, incompatível com os artigos 5º e 47, II, da Constituição do Estado, abaixo reproduzidos:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual” (grifo nosso)

É que a Constituição do Estado, em simetria com o modelo Federal, não concede ao parlamentar a iniciativa de leis que disponham sobre o serviço público e seu regime jurídico.

Em realidade, a administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de “Governo”, e que tem na lei seu mais relevante instrumento[1], participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2]. Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que:

"A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos ou autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (...). A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções. Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º.). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o Legislativo provê 'in genere', o Executivo 'in specie', a Câmara edita normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental (...) Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa privativamente, à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § I, c/c 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.'[3]

Percebe-se que a lei em análise concede benefício (ausência do trabalho sem prejuízo de vencimentos e demais vantagens, no primeiro dia de aula dos filhos menores de cinco anos) às servidoras públicas. Além de tratar de matéria da alçada do Poder Executivo, interfere na administração do orçamento, pois acarreta despesa sem a indicação da fonte de custeio.

Em suma, a disciplina do regime jurídico dos servidores públicos é matéria que a Constituição reservou à iniciativa do Executivo, não podendo o Legislativo tomar a iniciativa a respeito.

Por isso, a solução deste processo é a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos, que “PERMITE À SERVIDORA PÚBLICA MUNICIPAL DE GUARULHOS DEIXAR DE COMPARECER AO SERVIÇO, SEM PREJUÍZO DOS VENCIMENTOS, NO PRIMEIRO DIA DE AULA DOS FILHOS MENORES DE CINCO ANOS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.037, de 15 de maio de 2012, do Município de Guarulhos.

São Paulo, 13 de agosto de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

fjyd



[1] Christian Starck. 'El Concepto de ley en la constitucion alemana', p. 73, CEC, Madrid, 1979.

[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo' do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 12ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 576.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.