Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0127084-67.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Ribeirão Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto

 

 

 

Constitucional. Ambiental. Processual civil. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 2.508, de 29 de fevereiro de 2012, do Ribeirão Preto. Falta de capacidade postulatória isolada do Procurador. Mandato sem poderes específicos. Irregularidade sanável. Diligência alvitrada. Lei, de iniciativa parlamentar, possibilitando o uso de sistemas individuais e alternativos de tratamento enquanto não for possível o acesso à rede pública de coleta de esgoto e posterior tratamento nas respectivas estações. Violação do princípio da separação de poderes. Falta de planejamento técnico. Ausência de participação comunitária no respectivo projeto de lei. Invasão da competência normativa estadual. Preservação e proteção do meio ambiente. Procedência da ação. 1. Na ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE/89), e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, poderes específicos e subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo procurador. 2. Viola a separação de poderes, não por ofensa à reserva da Administração, mas, por inobservância da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, lei municipal, de iniciativa parlamentar, que possibilita meios alternativos de tratamento enquanto não for possível o acesso à rede pública de coleta de esgoto e posterior tratamento nas respectivas estações, em razão da falta de planejamento, a cargo do Poder Executivo, e à luz dos princípios de precaução e de prevenção impositivos na polícia ambiental. 3. Lei que não primou pela participação comunitária em seu processo produtivo. 4. Invasão, ademais, da competência normativa estadual para o assunto que não se limita a predominância do interesse local. 5. Lei que não apresenta certeza em relação à preservação e proteção do meio ambiente, do solo e das águas, e compromete a proibição de despejo de esgoto sem o devido tratamento nos corpos d’água. 6. Incompatibilidade com os arts. 5º, 180, I a III e V, 181, 191, 205, III e 208, CE/89.

  

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei Complementar n. 2.508, de 29 de fevereiro de 2012, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que possibilita o uso de sistemas individuais e alternativos de tratamento enquanto não for possível o acesso à rede pública de coleta de esgoto e posterior tratamento nas respectivas estações, sob alegação de incompatibilidade com os arts. 5º, 37, 47, II, III e XIV, da Constituição Estadual (fls. 02/13).

2.                A liminar foi deferida (fls. 41/42), o douto Procurador-Geral do Estado se absteve da defesa da norma impugnada (fls. 52/53) e as informações defendem a constitucionalidade da norma (fls. 55/57).

3.                É o relatório.

4.                A petição inicial é subscrita apenas por douto Procurador Municipal, acolitado por estagiário (fl. 13), constituído pelo Prefeito (fls. 14/15).

5.                A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

2.      Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3.      É a síntese do necessário.

4.      Decido.

5.        Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6.      A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7.      Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8.      O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9.     Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

10.     No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

11.     Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

6.                Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

7.                Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo advogado.

8.                Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

9.                Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

10.              Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e regularização da representação processual (mandato com poderes específicos), no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

11.              No mérito, anoto ser descabido o exame de outras normas senão a Constituição Estadual no controle concentrado de constitucionalidade via ação direta de lei municipal, consoante disposto no art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

12.              Também registro que não há como prevalecer a alegação de violação aos arts. 37 e 47, II e XIV, da Constituição Estadual, porque, não se trata de violação ao princípio da separação de poderes por invasão da reserva da Administração.

13.              Com efeito, a hipótese em pauta não espelha a intromissão indevida do Poder Legislativo em assunto reservado ao domínio normativo exclusivo do Chefe do Poder Executivo, tanto que a petição inicial indica a necessidade de lei para disciplina da matéria.

14.              Porém, em atenção à noção de causa de pedir aberta elementar ao controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade (RTJ 200/91), é viável a análise e o confronto da lei municipal com outros preceitos da Constituição Estadual aplicável aos Municípios por força de seu art. 144 e do disposto no caput do art. 29 da Constituição Federal.

15.              A lei local impugnada, de iniciativa parlamentar, possibilita o uso de sistemas individuais e alternativos de tratamento enquanto não for possível o acesso à rede pública de coleta de esgoto e posterior tratamento nas respectivas estações, e tem como objeto a polícia ambiental.

16.              A leitura do respectivo processo legislativo, cuja cópia foi juntada (fls. 59/79), revela que ela não primou pela observância da participação comunitária aludida nos arts. 180, II, e 191, da Constituição, como formalidade essencial à sua produção, sendo, por isso, inconstitucional.

17.              Ainda no domínio formal, a lei municipal contestada invadiu a esfera de competência normativa estadual:

“Artigo 205 – O Estado instituirá, por lei, sistema integrado de gerenciamento dos recursos hídricos, congregando órgãos estaduais e municipais e a sociedade civil, e assegurará meios financeiros e institucionais para:

(...)

III – a proteção das águas contra ações que possam comprometer o seu uso atual e futuro”.

18.              Patente, pois, que a matéria é do domínio da legislação estadual por não revelar predominante interesse local, exigível nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal.

19.              Não bastassem esses vícios formais, a lei local objurgada ao permitir a coleta e o despejo de esgoto por meios alternativos padece de inconstitucionalidade material por vulnerar os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

I – o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes;

(...)

III – a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural;

(...)

V – a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;

(...)

Artigo 181 – Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

(...)

Artigo 191 – O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

(...)

Artigo 208 – Fica vedado o lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais, sem o devido tratamento, em qualquer corpo de água”.

20.              Ainda que a justificativa do projeto de lei (fl. 61) tenha encarecido a preocupação com “meios alternativos, e ambientalmente corretos” e “enormes prejuízos ao meio ambiente, às águas superficiais e subterrâneas, causados pelo lançamento in natura do esgoto ou mesmo pelo uso de fossas”, tendo como destino “áreas que, por qualquer motivo, ainda não estejam interligadas ao sistema público de coleta e tratamento de esgotos (zonas rurais ou periferias urbanas)”, e conquanto a lei condicione o recurso aos sistemas alternativos à avaliação e aprovação dos órgãos ambientais competentes, segundo metodologias consagradas de segurança sanitária e ambiental (art. 2º), não há, no nível de precaução ou mesmo de prevenção, certeza para afirmar que os meios alternativos não coloquem em risco o bem-estar dos habitantes, e a preservação e a proteção do meio ambiente e, por fim, que eles constituam, tecnicamente, o “devido tratamento” exigido pelo art. 208 da Constituição Estadual.

21.              Daí porque assume relevância a necessidade de - como posto na petição inicial - planejamento para disciplina do assunto, e que não foi observada in casu. Esse argumento converge à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo sob o pálio da separação de poderes, e é prestigiado pela jurisprudência do colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas” (TJSP, ADI 163.559-0/0-00).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação” (ADI 134.169-0/3-00, Rel. Des. Oliveira Santos, 19-12-2007).

22.              Opino pela regularização da petição inicial e do mandato e, no mérito, pela procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 2.508, de 29 de fevereiro de 2012, do Município de Ribeirão Preto, que contrasta com os arts. 5º, 180, I a III e V, 181, 191, 205, III e 208, da Constituição Estadual.

                   São Paulo, 9 de outubro de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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