Parecer
Autos nº 0131438-38.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Tambaú
Objeto: art. 107-A da Lei Orgânica Municipal de Tambaú
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 107-A da Lei Orgânica Municipal de Tambaú, que veda a nomeação ou designação de pessoas que se enquadrem em algumas condições de inelegibilidade previstas na legislação federal para os cargos, empregos ou funções de direção e chefia da Administração direta e indireta, inclusive da Câmara Municipal. Projeto de Emenda de iniciativa parlamentar.
1. Lei municipal de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a nomeação para cargos de provimento em comissão, adotando restrições semelhantes às da “Lei Ficha Limpa”, não viola a regra da separação dos Poderes.
2. O Chefe do Poder
Executivo tem iniciativa legislativa reservada para a criação e extinção de
cargos públicos (art. 24, § 2º, 1 e 4, CE; art. 61, § 1º, II, a e c,
CF). Não se situa no domínio da reserva da
Administração ou da discricionariedade administrativa o estabelecimento de
condições para o provimento de cargos públicos.
3. O estabelecimento de restrições gerais ao acesso aos cargos, funções e empregos públicos não se trata de privativa atividade administrativa (ou executiva), mas sim de função de Estado.
4. Inexistência de inconstitucionalidade.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Tambaú, tendo por objeto o art. 107-A da Lei Orgânica Municipal de Tambaú, fruto de Emenda de iniciativa parlamentar, que veda a nomeação de servidor público para cargo declarado em lei de livre nomeação e exoneração pela Administração Pública direta e indireta, de direção e chefia, incluindo a Câmara Municipal, quando se enquadrar em algumas das condições de inelegibilidade previstas na legislação federal.
Sustenta o autor, em síntese, que o artigo mencionado acrescido à Lei Orgânica Municipal, por força de Emenda de iniciativa parlamentar, é inconstitucional por afrontar os arts. 24 e 47 da Constituição Estadual, uma vez que seria da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei que disponha sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de suas remunerações, bem como que disponha sobre o regime jurídico e provimento de cargos de servidores públicos.
A Lei teve a sua vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 23/25).
Citada regularmente, fls. 32, a Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 34/35).
Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 38/41) defendendo o ato normativo impugnado e sustentando que o legislador atuou dentro da esfera de competência legislativa estabelecida nos arts. 29 e 30 da Constituição Federal, porque é tema referente à Administração Pública, e, portanto, matéria de interesse local.
É a síntese do que consta dos autos.
O art. 107-A incorporado à Lei Orgânica Municipal de Tambaú por força de Emenda de iniciativa parlamentar tem a seguinte redação:
“Art. 107-A: Fica
proibida a nomeação de servidor público em comissão para cargo declarado em lei
de livre nomeação e exoneração pela Administração Pública direta e indireta, de
direção e chefia, incluindo a Câmara Municipal, quando:
I-
condenados,
em decisão transitada em julgado, pela prática de crimes dolosos;
II-
os que
forem declarados inelegíveis, por decisão irrecorrível do órgão competente, por
período igual ou superior a 4 (quatro) anos, salvo se o ato houver sido
suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário”;
III-
os que
forem demitidos a bem do serviço público em decorrência de processo
administrativo ou judicial, pelo prazo de 4 (quatro) anos, contados da decisão,
salvo de o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário.
Não se verifica qualquer violação aos parâmetros da
Constituição Estadual indicados na inicial.
O art. 24 da CE cuida das matérias inseridas dentro da iniciativa de lei do Governador do Estado, com destaque para o § 2º, 1 que prevê que “compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração”. O art. 47 também trata de matérias de competência legislativa privativa do Governador do Estado.
A imposição de restrições à nomeação para cargos,
empregos ou funções de direção e chefia, baseada em hipóteses de
inelegibilidade, não se trata de ingerência do Poder Legislativo na esfera de
atribuição do Poder Executivo em violação ao princípio da separação dos Poderes.
O art. 37, I, da Constituição Federal, reproduzido no art. 115, I, da Constituição do Estado, estabelece que os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei.
O § 3º do art. 39 da Constituição Federal prevê que:
“Aplica-se aos servidores ocupantes de
cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI,
XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos
diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.
Admite-se, portanto, que através de lei sejam
previstas contenções de acessibilidade ao serviço público.
Resta apenas verificar, à vista do princípio da separação de Poderes,
se a iniciativa legislativa para o estabelecimento de condições para provimento
de cargos comissionados é reservada ou não ao Chefe do Poder Executivo.
A primeira impressão, extraída do art. 24, § 2º, 1 e 4, da
Constituição Estadual, que reproduz o art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição
Federal, tenderia a uma resposta positiva.
No entanto, a reserva de lei à qual alude o inciso I
do art. 115 da CE e o § 3º do art. 39 da CF não é privativa do Poder Executivo,
pois não se encontra inserida dentre as matérias de competência privativa
previstas nos art. 24, § 2º, e 47 da Constituição Estadual.
O estabelecimento de restrições gerais ao acesso aos
cargos, funções e empregos públicos não se trata de privativa atividade
administrativa (ou executiva), mas sim de função de Estado, razão pela qual a
iniciativa parlamentar neste sentido não viola o princípio da separação de Poderes.
Não se trata de atividade de organização da Administração
Pública, mas de condições de acesso ao serviço público em geral, inclusive do
Poder Legislativo.
A reserva legislativa do Executivo, prevista no art. 24, § 2º, 1
e 4, da Constituição Estadual, refere-se tão só à criação e extinção de cargos,
funções e empregos no serviço público. Isso significa que a lei
pode enunciar termos, condições e especificações, no interior dos quais
procederá o Chefe do Executivo.
Neste sentido o ensinamento de Celso Antonio Bandeira de Mello ao consignar que: “A extinção de cargos públicos dar-se-á através de atos da mesma natureza, podendo também, quando pertinentes ao Poder Executivo, ser extintos ‘na forma da lei’, pelo chefe deste Poder, conforme prevê o art.84, XXV, da Constituição. Isto significa que a lei pode enunciar termos, condições e especificações, no interior dos quais procederá o Chefe do Executivo”. (Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. Rev. At., Malheiros, 2012, p. 309)
Foi este tratamento conferido em situação absolutamente similar,
consistente na edição de regras de combate ao nepotismo, afinal, a exigência de
honorabilidade para o provimento de cargos públicos é algo que se situa no raio
de incidência do princípio da moralidade administrativa (art. 37, Constituição
Federal; art. 111, Constituição Estadual), base que une a legislação
reacionária ao nepotismo e de adoção da “ficha limpa” no provimento de cargos
públicos comissionados.
Se, como nesta hipótese semelhante, concluiu-se que o princípio da
moralidade administrativa era bastante para orientar a criação e a
interpretação de norma restritiva, a solução deste caso deve adotar idênticas
premissas, lembrando-se que, com razão, Diógenes Gasparini não visualizou a
proibição do nepotismo nas matérias da reserva de iniciativa legislativa do
Chefe do Poder Executivo (“Nepotismo político”, in Corrupção, Ética e Moralidade Administrativa, Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2008, pp. 73-98).
E no julgamento da questão o Supremo Tribunal Federal decidiu que:
“A norma
insculpida no § 1º do artigo 61 da Carta Federal, mais precisamente na alínea
‘a’ do inciso II, há que ter alcance perquirido sem apego exacerbado à
literalidade. É certo que são da iniciativa
privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração (...)
Evidentemente, está-se diante de preceitos jungidos à atividade normativa ordinária,
não alcançando o campo constitucional, porquanto envolvidos aqui interesses do Estado de envergadura maior e, acima de tudo, da necessidade de
se ter, no tocante a certas matérias, trato
abrangente a alcançar, indistintamente, os três Poderes da República.
Assim o é quanto ao tema em discussão. Com a Emenda Constitucional nº 12 à
Carta do Rio Grande do Sul, rendeu-se homenagem aos princípios da legalidade,
da impessoalidade, da moralidade, da isonomia e do concurso público
obrigatório, em sua acepção maior. Enfim, atuou-se na preservação da própria res
pública. A vedação de
contratação de parentes para
cargos comissionados - por sinal a abranger, na espécie, apenas os cônjuges,
companheiros e parentes consanguíneos, afins ou por adoção até o segundo grau
(pais, filhos e irmãos) - a fim de prestarem
serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de grande prestígio, mostra-se como
procedimento inibidor da prática de
atos da maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de tratamento jurídico único - artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes, o
Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de
servidores públicos conforme a maior ou menor fidelidade do Poder aos
princípios básicos decorrentes da Constituição Federal”. (STF, ADI
1.521-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 12-03-1997, m.v., DJ
17-03-2000, p. 02, RTJ 173/424)
Esse posicionamento é perfilhado no Supremo Tribunal Federal (STF,
RE 183.952-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 19-03-2002, v.u., DJ
24-05-2002, p. 69; STF, RE 372.911-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 03-04-2007, DJ
08-06-2007, p. 94) e neste egrégio Tribunal de Justiça (TJSP, ADI
71.670-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Fortes Barbosa, 17-10-2001; TJSP, ADI
148.788-0/5-00, Órgão Especial, Rel. Des. Ivan Sartori, v.u., 19-09-2007).
Há que se ponderar, nesta quadra, a diferença entre requisitos
para o provimento de cargos públicos - matéria situada na iniciativa
legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (STF, ADI 2.873-PI, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 20-09-2007, m.v., DJe 09-11-2007, RTJ 203/89) -
e condições para o provimento de cargos públicos - que não se
insere na aludida reserva, e está no domínio da iniciativa legislativa comum ou
concorrente entre Poder Legislativo e Poder Executivo – porque não se refere ao
acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício.
Não se verifica no ato normativo qualquer imposição à Administração
no sentido de promover a constatação de incompatibilidade e exoneração de
servidores públicos. E, ainda que tivesse previsto, ou que isto possa ser
exigido da Administração, não se vislumbra ângulo para o sucesso da ação. Como
já julgado nesse egrégio Tribunal de Justiça em fundamentação integralmente
apropriada à hipótese, “não terá sentido
algum proibir o administrador de praticar o nepotismo, a não ser se for também
para impor àquele a coibição da prática que estiver em curso, fazendo-o
exonerar ou demitir os parentes ou rescindir seus contratos de trabalho, o que,
data vênia, não deixa de ser
disposição para o futuro, com força de extirpar qualquer sentido retroativo da
norma em exame” (TJSP, ADI 148.484-0/8-00, Órgão Especial, Rel. Des. Palma
Bisson, m.v., 02-04-2008).
Registre-se que no julgamento da ação direta nº
0301346-30.2011.8.26.000, esse Colendo Órgão Especial rechaçou, em situação
análoga, a alegação de inconstitucionalidade:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n° 3.441, de 30 de setembro de
2011, de Mirassol - Projeto de iniciativa de Vereador – Diploma legislativo que
dispõe sobre a nomeação para cargos em comissão no âmbito dos órgãos do Poder
Executivo, Poder Legislativo Municipal e Autarquias de Mirassol e dá outras
providências – Estabelecimento de restrições à nomeação de pessoa para o
exercício de função pública inerente ao cargo em comissão - Restrições
semelhantes à estabelecida pela "Lei da Ficha Limpa" (LC n° 135/2010)
- Moralidade administrativa que se revela como princípio constitucional da mais
alta envergadura - Exigência de honorabilidade para o exercício da função
pública que não se insere nas matérias de reserva de iniciativa legislativa do
Chefe do Poder Executivo - Ausente o vício de iniciativa - Exonerações de
servidores contratados em descompasso com esta lei que não consubstancia
aplicação retroativa do diploma legal - Precedentes deste Órgão Especial que
cuidaram de situações análogas neste mesmo sentido Lei Municipal reputada
constitucional - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente,
revogada a liminar”.
A Câmara Municipal de Tambaú laborou na esfera de
competência própria do Poder Legislativo, atuando no círculo de atribuições
decorrente de sua autonomia emergente do art. 5º da Constituição Estadual, ao estabelecer
de forma geral e abstrata, condições para provimento de todas as funções de
direção e chefia da administração direta e autárquica no âmbito municipal,
inclusive as daquele Poder Legislativo.
Não há violação ao princípio da separação de Poderes.
Não se situa no domínio da reserva da Administração ou da discricionariedade
administrativa o estabelecimento de condições para o provimento de cargos
públicos.
Oportuno lembrar, ainda, salutar admoestação do
Marquês de São Vicente, mui apropriada ao caso:
“A arte e o tino do governo está em assinar
aos homens que reúnem o talento à probidade o lugar que lhes compete, não só
para que o auxiliem, como para que não lhe criem embaraços e não procurem abrir
carreira, forçando as traves que lhe são opostas” (José Antonio Pimenta Bueno.
Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império, Rio de
Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, pp. 379-433, RT
731/678).
A vedação de nomeação ou designação de pessoas que se enquadrem em algumas das condições de inelegibilidade previstas na legislação federal para os cargos, empregos ou funções de direção e chefia da Administração direta encontra-se amparada pelos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade que norteiam a atuação da Administração Pública.
Posto isso, o parecer é no sentido da improcedência da ação direta, declarando-se a constitucionalidade do art. 107-A da Lei Orgânica do Município de Tambaú.
São Paulo, 10 de outubro de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca