Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0131956-28.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Mauá

Objeto: Leis nºs 4.332/2008 e 4.360/2008, do Município de Mauá

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal, em face das Leis nºs 4.332/2008 e 4.360/2008, do Município de Mauá, que autorizam o “Poder Executivo a transacionar em ações judiciais e ações trabalhistas que tenham como autores servidores municipais”. Irregularidade na representação processual. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa “ad causam” e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Quebra da ordem de precedência de pagamento de precatórios (art. 57 da Constituição Estadual). Violação ao princípio da impessoalidade. Natureza “autorizativa” da lei que é irrelevante para o deslinde da questão. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Mauá, tendo por objeto as Leis nºs 4.332/2008 e 4.360/2008, daquele Município, pelas quais o Poder Executivo fica autorizado a transigir em ações judiciais e reclamações trabalhistas.

Sustenta o autor que as leis em questão alteram a ordem de pagamento de precatórios, acarretando violação ao disposto no art. 57 e seus parágrafos, da Constituição Estadual.

A liminar foi denegada (fls. 16/17), ante a ausência do “periculum in mora”.

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 33/36, tão somente quanto ao processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 26/28).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A petição inicial é subscrita apenas pelos doutos procuradores municipais (fls. 09).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Este Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

Assim sendo, requeiro seja o autor intimado para regularização de sua representação processual ou subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

 

A Lei nº 4.332, de 18 de abril de 2008, do Município de Mauá, assim dispõe:

         “Art. 1º É autorizado o Poder Executivo a transigir nas ações judiciais e reclamações trabalhistas que tenham como autores servidores municipais, cuja conta de liquidação não ultrapasse a quantia correspondente até 400 (quatrocentos) F.M.P. – Fator Monetário Padrão, mediante as seguintes condições:

         I. a transação deverá ocorrer desde que haja benefícios para o erário municipal, com desconto de até 10% (dez por cento) do total a ser pago;

         II. a transação só poderá ocorrer em havendo decisão de segundo grau favorável ao servidor, transitada em julgamento;

         III. O pagamento será efetuado após homologação da transação pelo Juízo competente.

         Art. 2º As despesas para execução da presente Lei correrão pelas dotações orçamentárias próprias.

         Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

E a Lei nº 4.360, de 14 de julho de 2008, foi editada para alterar o art. 1º da Lei nº 4.332 acima transcrita, no que tange ao valor da quantia apurada na conta de liquidação e assim se encontra redigida:

         “Art. 1º É autorizado o Poder Executivo a transigir nas ações judiciais e reclamações trabalhistas que tenham como autores servidores municipais, cuja conta de liquidação não ultrapasse a quantia correspondente até 75.000 (setenta e cinco mil) F.M.P. – Fator Monetário Padrão, mediante as seguintes condições:

         I. a transação deverá ocorrer desde que haja benefícios para o erário municipal, com desconto de até 10% (dez por cento) do total a ser pago;

         II. a transação só poderá ocorrer em havendo decisão de segundo grau favorável ao servidor, transitada em julgamento;

         III. O pagamento será efetuado após homologação da transação pelo Juízo competente.

         Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

A aventada inconstitucionalidade emerge clara, na medida em que se percebe nitidamente a possibilidade de se fraudar a ordem de pagamentos devidos pela Administração.

Ora, como consta do inciso II, a transação só poderá ocorrer após decisão transitada em julgado, favorável ao servidor.

Em assim sendo, o pagamento deve seguir a ordem de todos os demais. Não poderá este ou aquele servidor receber seu crédito antes dos demais credores do Município, sem afronta ao princípio da impessoalidade, que norteia os atos da Administração, tutelado no art. 111 da Constituição Bandeirante, in verbis:

Artigo 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

Esta é, aliás, a razão de ser do regramento estatuído pelo art. 57 da Constituição Estadual, a seguir transcrito:

Artigo 57 - À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Estadual ou Municipal e correspondentes autarquias, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação de precatórios e à conta dos respectivos créditos, proibida a designação de casos ou pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim.
§1º - É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
§2º - As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal de Justiça proferir a decisão exeqüenda e determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
§3º - Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado. (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
§4º - O disposto no “caput” deste artigo, relativamente à expedição dos precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Estadual ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado. (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
§5º - São vedados a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na forma estabelecida no §4º deste artigo e, em parte, mediante expedição de precatório. (NR)
- Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
§6º - A lei poderá fixar valores distintos para o fim previsto no §4º deste artigo, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público. (NR)
- Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/02/2006.
§ 7º - Incorrerá em crime de responsabilidade o Presidente do Tribunal de Justiça se, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório. (NR)
- Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.

Ora, a transação após a sentença transitada em julgado, com todo respeito, não tem razão de ser, a menos que seja como forma de burla à ordem de pagamento a ser feita pela Administração.

Por tais motivos, as impugnadas leis são inconstitucionais, por violação ao art. 57 da Constituição do Estado de São Paulo.

Nem se alegue que, tratando-se de leis autorizativas, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade Leis nºs 4.332/2008 e 4.360/2008, do Município de Mauá.

São Paulo, 22 de novembro de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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