Parecer
Processo n. 0131959-80.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Mauá
Requerida: Câmara Municipal de Mauá
Constitucional. Administrativo. Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 3.425, de 17 de outubro de 2001, do Município de Mauá, de iniciativa parlamentar. Falta de capacidade postulatória isolada do Procurador. Mandato sem poderes específicos. Irregularidade sanável. Diligência alvitrada. Tributo pela ocupação e uso do solo pelas empresas prestadoras de serviços de telefonia e de fornecimento de energia elétrica e gás. Violação da separação dos poderes e dos princípios federativo e da razoabilidade. Procedência da ação. 1. Na ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE/89), e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, poderes específicos e subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo procurador. 2. É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que institui tributo para remuneração do uso e ocupação do solo na prestação dos serviços públicos de telefonia e de fornecimento de energia elétrica e gás por violação à separação de poderes e aos princípios federativo e da razoabilidade. 3. É da reserva da Administração a instituição de tarifa. 4. Ofende a razoabilidade e o interesse público onerar a prestação de serviço público federal pela remuneração do uso de bem público municipal necessário à sua execução, não bastasse a competência da União para disciplina do assunto. 5. Constituição Estadual: arts. 5º, 47, II e XIV, 111, 120 e 144.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
contestando a Lei n. 3.425, de 17 de outubro de 2001, do Município de Mauá, de
iniciativa parlamentar, que institui tributo para remuneração do uso e ocupação
do solo na prestação dos serviços públicos de telefonia e de fornecimento de
energia elétrica e gás, sob alegação de violação aos
arts. 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 120, 122, 144, 174, I a III, e 176, I e V e §
1º, da Constituição Estadual (fls. 02/16). Negada liminar (fl. 24), a douta Procuradoria-Geral do
Estado declinou de sua intervenção (fls. 34/36) e a Câmara Municipal não
prestou informações apesar de notificada (fls. 25, 37).
2. É o
relatório.
3. A petição inicial é subscrita por doutos
Procuradores Municipais (fl. 16), desacompanhada de mandato.
4. A legitimidade ativa
pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem
como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.
2. Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.
3. É a síntese do necessário.
4. Decido.
5. Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.
6. A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.
7. Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.
8. O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).
9. Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.
10. No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.
11. Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).
5. Consoante
explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a
VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar
no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva
Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle
concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p.
246).
6. Logo,
considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade
postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por
causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo,
subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma
isolada pelo advogado ainda que procurador municipal.
7. Ademais,
há decisão registrando que:
“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).
8. Esse
entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.
9. Assim sendo, opino,
preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e
regularização da representação processual (mandato com poderes específicos), no
prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de
inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.
10. A ação é procedente.
11. Causa
espécie, primeiramente, a lei não ter indicado a espécie de tributo incidente.
E isso era essencial porque a retribuição pelo uso de bem público se operacionaliza
por preço público, de natureza não tributária e cuja fixação é do domínio
privativo do Chefe do Poder Executivo.
12. A
questão já foi abordada na literatura jurídica, manifestando Maria Sylvia
Zanella Di Pietro que “quando o particular utiliza privativamente um bem
público para prestar um serviço que vai beneficiar toda a coletividade, não se
justifica a remuneração” (Parcerias na
Administração Pública, São Paulo: Atlas, 2005, 5ª ed., p. 405) nessa
autêntica concessão acessória de bem público a de serviço público (Direito Administrativo, São Paulo:
Atlas, 2010, 23ª ed., p. 700).
13. Afronta
a razoabilidade e o interesse público o ato normativo impugnado, o que
evidencia ofensa ao art. 111 da Constituição Estadual, em atenção à noção de
causa de pedir aberta elementar ao controle jurisdicional concentrado de
constitucionalidade (RTJ
200/91).
14. Não
bastasse, e como já assinalado, a lei local impugnada é portadora de vício
formal, relativo à iniciativa legislativa, o que caracteriza violação ao
princípio da separação de poderes (art. 5º, Constituição Estadual).
15. Com
efeito, a matéria é do domínio do Poder Executivo. O art. 120 da Constituição
do Estado, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144, enuncia que “os
serviços públicos são remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão
executivo competente, na forma que a lei estabelecer”. Trata-se de assunto
submetido à reserva da Administração, revelação do poder normativo da
Administração.
16. O
poder normativo da Administração consiste, segundo Odete Medauar, na faculdade
da Administração Pública “de emitir normas para disciplinar matérias não
privativas da lei” (Direito
Administrativo Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, 11ª ed., p.
115), estabelecendo a denominada reserva da Administração que, conforme
proclama a jurisprudência, tem o seguinte perfil:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O
princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência
normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência
administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não
se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do
Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob
pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir,
por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder
Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais.
Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei,
transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento
heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação
político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas
prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
17. No
ponto, visualiza-se a ofensa ao art. 47, II e XIV, da Constituição Estadual.
18. Por
derradeiro, e não menos importante, a lei local objurgada agride o princípio
federativo, cuja incidência é admissível nesta via por obra da norma remissiva
constante do art. 144 da Constituição Estadual.
19. O art. 144 da
Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além
das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é
denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a
disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições
constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao
credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por
esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe
06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe
26-10-2010).
20. Daí
decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da
Constituição Estadual por sua remissão à Constituição Federal e a seus arts.
21, XI e XII, b, e 22, IV.
21. Neste
sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA. COBRANÇA. TAXA DE USO E OCUPAÇÃO DE SOLO E ESPAÇO AÉREO. CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO PÚBLICO. DEVER-PODER E PODER-DEVER. INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS NECESSÁRIOS À PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO EM BEM PÚBLICO. LEI MUNICIPAL 1.199/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO. ARTIGOS 21 E 22 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Às empresas prestadoras de serviço público incumbe o dever-poder de prestar o serviço público. Para tanto a elas é atribuído, pelo poder concedente, o também dever-poder de usar o domínio público necessário à execução do serviço, bem como de promover desapropriações e constituir servidões de áreas por ele, poder concedente, declaradas de utilidade pública. 2. As faixas de domínio público de vias públicas constituem bem público, inserido na categoria dos bens de uso comum do povo. 3. Os bens de uso comum do povo são entendidos como propriedade pública. Tamanha é a intensidade da participação do bem de uso comum do povo na atividade administrativa que ele constitui, em si, o próprio serviço público [objeto de atividade administrativa] prestado pela Administração. 4. Ainda que os bens do domínio público e do patrimônio administrativo não tolerem o gravame das servidões, sujeitam-se, na situação a que respeitam os autos, aos efeitos da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à prestação de serviço público. A imposição dessa restrição não conduzindo à extinção de direitos, dela não decorre dever de indenizar. 5. A Constituição do Brasil define a competência exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica [artigo 21, XII, b] e privativa para legislar sobre a matéria [artigo 22, IV]. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a declaração, incidental, da inconstitucionalidade da Lei n. 1.199/2002, do Município de Ji-Paraná” (STF, RE 581.497-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 27-05-2010, v.u., DJe 27-08-2010, RT 904/169).
22. Opino,
preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e
regularização da representação processual e, no mérito, pela procedência da ação por incompatibilidade da Lei n. 3.425, de 17 de outubro de 2001,
do Município de Mauá, com os arts. 5º, 47, II e
XIV, 111, 120 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
São
Paulo, 19 de novembro de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj