Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0131962-35.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mauá

Objeto: Lei nº 4.663, de 11 de maio de 2011, do Município de Mauá

 

Ementa:

Constitucional. Administrativo. Separação de Poderes. Reserva de Iniciativa. Processual civil. Ação direta de inconstitucionalidade. Falta de capacidade postulatória isolada do Procurador. Mandato sem poderes específicos. Irregularidade sanável. Diligência alvitrada.

1. Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 4.663, de 11 de maio de 2011, do Município de Mauá, que “dispõe sobre a instalação de torneiras que propiciem economia de água nos órgãos da Administração Pública no Município”.

2. Preliminarmente. Necessidade de regularizar a representação. Na ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE/89), e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, poderes específicos e subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo procurador

3. Mérito. Procedência da ação. Projeto de vereador. Ato de gestão administrativa incompatível com a vocação da Câmara Municipal. Usurpação de funções, com ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 5º da Constituição Estadual.

4. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 4.663, de 11 de maio de 2011, do Município de Mauá, que “dispõe sobre a instalação de torneiras que propiciem economia de água nos órgãos da Administração Pública no Município”.

O autor esclarece que a lei decorre de projeto subscrito por parlamentar, apontando o vício de iniciativa. Afirma que o ato normativo traduz-se em ofensa aos arts. 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 144, 177, I, II e III, 176, I, V e seu § 1º, da Constituição do Estado.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 20).

O Presidente da Câmara Municipal não se manifestou (fls. 33).

A Procuradoria-Geral do Estado manifestou-se a fls. 30/32.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A petição inicial é subscrita apenas por douto Procurador Municipal.

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

2.      Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3.      É a síntese do necessário.

4.      Decido.

5.         Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6.      A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7.      Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8.      O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9.     Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

10.     No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

11.     Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

 

         Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

 

         Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo advogado.

 

         Ademais, há decisão registrando que:

 

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

 

         Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

         Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e regularização da representação processual (mandato com poderes específicos), no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

No mérito, a ação é procedente.

A lei em análise decorre de projeto de autoria de Vereador e “dispõe sobre a instalação de torneiras que propiciem economia de água nos órgãos da Administração Pública no Município”. Determina, no seu art. 2º, que a Administração Municipal providenciará a substituição das torneiras convencionais instaladas em suas dependências. Se não bastasse, ainda especifica a torneira a ser instalada e impõe a sua regulamentação.

De fato, essa iniciativa configura a quebra do postulado da separação dos poderes.

Há quebra do princípio da separação de poderes nos casos, por exemplo, em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes, princípio estatuído no art. 5º da Constituição Estadual, que reproduz o contido no art. 2º da Constituição Federal. Há também não observância do disposto no art. 47 II e XIV da Constituição Paulista.

Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, o que abrange, à evidência, a definição dos equipamentos que devem ou não ser instalados pela Administração Pública. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

Não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que reside a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Exatamente esta é a hipótese dos autos, na qual, a pretexto de legislar, a Câmara Municipal editou verdadeiro ato de gestão administrativa, ao determinar, por via oblíqua, o que a Administração deve realizar.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.663, de 11 de maio de 2011, do Município de Mauá.

São Paulo, 18 de outubro de 2012.

                                    

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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