Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Autos nº. 0131963-20.2012.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Mauá
Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.771, de 23 de abril de 2012, de Mauá
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.771, de 23 de abril de 2012, de Mauá, que, na prática, impõe providências administrativas ao Chefe do Executivo, para fins de apoio material e humano a evento comemorativo previsto no referido diploma.
2) Na ação direta de inconstitucionalidade, o legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE), e, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo procurador municipal.
3) Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).
4) Parecer pela procedência da ação
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Mauá, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.771, de 23 de abril de 2012, do Município de Mauá, que, conforme respectiva rubrica, “institui no calendário oficial de eventos do Município, a ‘Festa do Pentecostes’, que se realizará a cada dois anos, no mês de maio, e dá outras providências”.
Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município.
Aponta para a violação dos arts. 5º, 25, 47, II, 111, 144, 174 e 176, I e III, todos da Constituição Paulista.
Foi deferida a medida liminar (fls. 23).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo impugnado (fls. 33/34).
A Câmara Municipal prestou informações (fls. 36/40).
É o relato do essencial.
Preliminarmente, a petição inicial é subscrita apenas pelo
douto Procurador-Geral do Município e pelo Procurador do Município (fl. 15).
A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II,
Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo
Supremo Tribunal Federal:
“1. O Governador do Estado de
Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a
decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e
individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado
as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.
2. Entende possuir legitimidade para a ação,
em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.
3. É a síntese do necessário.
4.
Decido.
5. Verifico que a ação, embora aparentemente
proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo
Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial
atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo
12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.
6. A medida constitucional utilizada revela
instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal
que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se
proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da
Constituição.
7. Com efeito, cuida ela de processo
objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e
pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras
instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.
8. O Governador de Estado é detentor de
capacidade postulatória intuitu personae
para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da
Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa
do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica
de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie
(ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de
3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de
23.8.01).
9.
Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade,
independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente
destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92),
constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.
10. No caso concreto, em que pese a invocação
do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação
pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi
efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta
condição assinou a peça inicial.
11. Ante essas circunstâncias, com fundamento
no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da
Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício
Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).
Consoante
explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a
VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar
no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva
Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle
concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p.
246).
Logo,
considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade
postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por
causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo,
subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma
isolada pelo advogado público.
Ademais,
há decisão registrando que:
“É de exigir-se, em ação direta de
inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de
procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para
atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).
Esse entendimento foi
direcionado também para os integrantes da advocacia pública.
Assim sendo, opino, preliminarmente,
pela intimação do autor para regularização e subscrição da petição inicial, no
prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de
inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito, acompanhando os termos
de respeitável decisão monocrática da lavra do eminente Desembargador Artur
Marques (ADI 990-10-477.578-7).
No mérito, a Lei Municipal nº 4.771, de 23 de abril de 2012, do Município de Mauá, de autoria parlamentar, que “institui no calendário oficial de eventos do município, a “Festa do Pentecostes”, que se realizará a cada dois anos, no mês de maio e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º. Fica incluído no Calendário Oficial de eventos do Município a ‘Festa de Pentecostes’, a ser realizada a cada dois anos, no mês de maio.
Art. 2º. A organização do evento será realizada com a participação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, Ministério da Madureira, no Jardim Zaíra- Mauá.
Art. 3º. O Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data da sua publicação.
Art. 4º. As despesas decorrentes da execução da presente Lei onerarão as verbas próprias do orçamento, suplementadas se necessário.
Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.
(...)”
Dita
lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo,
especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o
seguinte:
“Art. 5.º -
São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
Art. 47 –
Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
II – exercer,
com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração
estadual;
XIV –
praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do
Executivo;
Art. 144 – Os
Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira
se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.”
Nos
entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi
incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do
postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela
edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para
as atividades de gestão.
Essa
repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do
princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado
por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão
ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A
tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades
de planejamento, organização e direção dos serviços públicos.
Por
intermédio da lei em análise, a Câmara instituiu no calendário oficial de eventos do
Município a “Festa do Pentecostes”, onerando, desta forma, a
Administração.
Ao
criar a “Festa do Pentecostes”, determinando inclusive a data de realização, o
Legislativo local impôs ao Executivo uma atividade que se desdobra em inúmeras
tarefas, desde a definição do local, obras de infra-estrutura (som, iluminação,
divulgação, acomodação para o público, organização do trânsito, serviços
ambulatoriais, segurança etc.).
Por
tais razões, invadiu-se claramente o comando da administração pública, de
alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a
conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar.
Embora
elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem
como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina
atos que são próprios da função executiva.
Por
esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, §
1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a
iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração
pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa
ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos
Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem
decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo
estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos
fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às
hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto
padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos
Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0,
medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Se
a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para
os Municípios.
As
normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo
derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo
jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo
competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos
(Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit.,
pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica
patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.
Sobre
isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à
privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais
matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e
promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício
inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais
inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o
Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª
ed., pp. 544-545).
Nota-se,
por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte,
colide com as disposições dos artigos 25, da Constituição Bandeirante.
Esse
Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que
infrigem esses comandos:
“LEI
MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO
DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART
25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO
176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS.
PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn
142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).
Diante
do exposto, nosso parecer é, preliminarmente, pela intimação do autor para
regularização e subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de
indeferimento, e, no mérito, pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.771,
de 23 de abril de 2012, do Município de Mauá, que “institui no
calendário oficial de eventos do Município, a ‘Festa do Pentecostes’, que se
realizará a cada dois anos, no mês de maio, e dá outras providências”.
São Paulo, 05 de novembro de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb