Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0131964-05.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Mauá

Objeto: Lei Municipal nº 4.664, de 11 de maio de 2011

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.664, de 11 de maio de 2011, que estabelece o peso máximo do material escolar a ser transportado por aluno do pré-escolar até o ensino fundamental.

2)      Falta de capacidade postulatória isolada do Procurador. Mandato sem poderes específicos. Irregularidade sanável. Diligência alvitrada.

3)      Inexistência de inconstitucionalidade. Ausência de reserva de iniciativa, cujas hipóteses são indicadas taxativamente na CR (art. 61, § 1º).

4)      Não ocorrência de violação da separação de poderes (art. 2º da CR). A fiscalização quanto ao cumprimento das leis é inerente ao Poder de Polícia exercido pela Administração Pública. Entendimento diverso, levado às últimas consequências, esvaziaria por completo a iniciativa do Poder Legislativo para o processo de formação das leis, contrariando o art. 61da CR.

5)      Pedido de declaração de inconstitucionalidade com fundamento no art. 25 da Constituição do Estado. Hipótese em que o alegado aumento de despesa, caso ocorra, não decorrerá diretamente da lei. Questão de fato. Inviabilidade de exame em sede de ação direta, sob pena de contrariedade aos limites impostos ao processo objetivo no plano estadual, por força do art. 125, § 2º, da CR.

6)      Parecer pela improcedência da ação direta.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Mauá, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.664, de 11 de maio de 2011, que estabelece o peso máximo do material escolar a ser transportado por aluno do pré-escolar até o ensino fundamental.

Alega o autor a ocorrência de desrespeito ao princípio da separação de poderes, por tratar-se de matéria cuja iniciativa de lei é apenas ao Chefe do Poder Executivo, bem como que a lei não contém a indicação da receita para fazer frente às novas despesas dela decorrentes (artigos 5º e 144 da Constituição do Estado).

Foi determinada, liminarmente, a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 21/23).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 33/35).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 37/40).

É o relato do essencial.

Preliminarmente, frise-se que a petição inicial é subscrita por doutos Procuradores Municipais (fl. 13), desacompanhada de mandato.

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

2.      Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3.      É a síntese do necessário.

4.      Decido.

5.        Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6.      A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7.      Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8.      O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9.     Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

10.     No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

11.     Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo advogado ainda que procurador municipal.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e regularização da representação processual (mandato com poderes específicos), no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

No que toca ao mérito, a Lei Municipal nº 4.664, de 11 de maio de 2011, que estabelece o peso máximo do material escolar a ser transportado por aluno do pré-escolar até o ensino fundamental, tem a seguinte redação:

“(...)

 (...)”

Com a devida vênia, a ação deve ser julgada improcedente.

Em que pese nosso respeito pelo entendimento adotado pelo autor, a norma impugnada não é inconstitucional, e caso seja julgada procedente a ação direta, isso significará contrariedade aos art. 2º, 61, e 125, § 2º, da Constituição da República, pelos motivos expostos a seguir.

Para a construção de toda a argumentação contida na inicial o autor parte da premissa, mais ou menos explícita, de que na fiscalização e na aplicação da lei o Município deverá aparelhar melhor seus órgãos de fiscalização.

Em outras palavras, deixa entrever que na aplicação da lei, indiretamente, poderá ocorrer o aumento de despesas para as quais a lei não indica receitas, pois deverá ser criado órgão de fiscalização, ou haverá alteração na estrutura ou rotina de trabalho dos órgãos de municipais de controle já existentes.

Com a devida vênia, se esse raciocínio estiver correto, doravante restará completamente eliminada a iniciativa legislativa parlamentar.

Isso, na medida em que, como toda lei editada pelo Poder Legislativo exige fiscalização (inerente ao Poder de Polícia da Administração Pública), chegar-se-á à conclusão de que sempre, inexoravelmente, a iniciativa do processo de formação das leis deve partir do Poder Executivo.

Esse raciocínio, ao esvaziar a iniciativa parlamentar para o processo de formação das leis, contraria o art. 61 da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 24 da Constituição Paulista), bem como contraria o art. 2º da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 5º da Constituição Estadual).

O equívoco dessa construção, com absoluto respeito, fala por si mesmo.

O entendimento pacificado há muito no âmbito do Col. STF, intérprete último da Constituição, é de que reserva de iniciativa é matéria de direito estrito e não pode ser interpretada extensiva ou analogicamente.

E a situação tratada nestes autos não se encaixa em nenhuma das hipóteses taxativamente tipificadas, de reserva de iniciativa do Poder Executivo, previstas no art. 61, § 1º, da CR (reproduzidas no art. 24, § 2º, da Constituição Paulista), aplicáveis, por força do princípio da simetria, ao processo legislativo estadual ou municipal.

Confira-se o precedente a seguir transcrito, aplicável ao caso em exame mutatis mutandis:

“(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado. (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

Assim, se não há regra expressa prevendo reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, afirmar que ela existe significa contrariar o art. 61, da CR (que estabelece a iniciativa de parlamentares para o processo de formação das leis e os casos limitados de reserva de iniciativa do Chefe do Executivo), bem como contrariar o art. 2º da CR, dando ao princípio da separação de poderes alcance que ele não tem.

Mas não é só.

Observe-se que a lei não cria diretamente órgão administrativo para fins de fiscalização, nem estabelece rotina para o controle, por parte do Poder Público local, quanto ao seu cumprimento.

Dessa forma, saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, para fins de aplicação do art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo, é uma questão de fato.

Mais ainda é possível afirmar.

Saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, é, em verdade, uma conjectura relativamente aos fatos.

Mas o exame de questões de fato (ou de conjecturas relativamente aos fatos) é vedado em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Isso, porque o art. 125, § 2º, da CR apenas autoriza o constituinte estadual a instituir “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual”.

Em outras palavras, por força do art. 125, § 2º, da CR, é legitimada a previsão na Constituição do Estado da ação direta de inconstitucionalidade por força da qual o Tribunal de Justiça pode examinar a compatibilidade entre leis locais e a Carta Estadual.

A Constituição da República não autorizou, entretanto, que para examinar a inconstitucionalidade de leis locais no processo objetivo, o Tribunal de Justiça examine questões de fato.

Aliás, nem ao Col. STF foi concedida tal autorização, pois o que a Constituição permite à Suprema Corte, no art. 102, I, a, é que seja examinada, apenas, a “inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

A Constituição da República, por meio de tais dispositivos, criou mecanismos de controle abstrato, e não concreto, sobre a constitucionalidade das leis.

Daí o entendimento absolutamente pacífico no sentido de que, no processo objetivo, a cognição da Corte está limitada ao confronto direto entre a lei e a norma constitucional indicada como parâmetro de controle, sendo inviável estender esse exame à análise de inconstitucionalidades reflexas ou às questões de fato.

Confira-se, no Col. STF:

“A Constituição da República, em tema de ação direta, qualifica-se como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o STF. (...). O controle normativo abstrato, para efeito de sua valida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da CF. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade – que sempre deve transparecer imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado – depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional (...) (ADI 1.347-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 1º-12-1995). No mesmo sentido: ADPF 93-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009; ADI 3.376, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-6-2005, Plenário, DJ de 23-6-2006”. (g.n.)

Não bastasse isso, nem mesmo o art. 25 da Constituição do Estado foi contrariado.

Recordemos a redação desse dispositivo da Constituição Estadual:

“Art. 25. Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”.

Assim, não houve desrespeito ao art. 25 da Constituição do Estado.

Por outro lado, saber se a indicação foi feita corretamente é uma questão que pressupõe o confronto entre duas normas infraconstitucionais (a lei impugnada e a lei orçamentária municipal), análise essa que vai além da cognição possível em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Em síntese, a lei não contraria dispositivos da Constituição do Estado e não é correta, em nosso sentir, a afirmação de que há inconstitucionalidade em seu texto.

Assim, considerando que nada há no ato normativo indicando, diretamente, a criação de órgãos ou cargos públicos, ou mesmo a modificação de rotinas de fiscalização, caso seja declarada a inconstitucionalidade da lei com base em mera possibilidade de projeção concreta quanto aos fatos (suposição de aumento de despesas), isso significará contrariedade ao art. 125, § 2º, da CR.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da constitucionalidade da  Lei Municipal nº 4.664, de 11 de maio de 2011, de Mauá, com a improcedência da ação direta.

São Paulo, 12 de novembro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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