Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0137555-45.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Pirassununga

Objeto: Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de março de 2011, de Pirassununga.

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de março de 2011, de Pirassununga, de iniciativa parlamentar, que disciplina aspectos relacionados ao uso e ocupação do solo urbano no referido Município.

2)      Inconstitucionalidade reconhecida. Lei de iniciativa parlamentar que trata da ocupação e uso do solo. Violação da separação de poderes, bem como das diretrizes constitucionais que determinam a necessidade de planejamento e participação popular na legislação relacionada ao tema (art. 5º, art. 47, II, art. 144, art. 180, II, e art. 181, § 1º, da Constituição Paulista).

3)      Parecer no sentido da procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Pirassununga, tendo como alvo a Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de março de 2011.

Sustenta o autor, em síntese, que o diploma violou os artigos 5º, caput; 24, § 2º, “2”; 47, II e XIV; 174 e 176, I, todos da Constituição do Estado.

Foi deferida liminar para suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 193/195).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo (fls. 205/206).

A Câmara Municipal apresentou informações (fls. 209/220).

É o relato do essencial.

A Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de março de 2011, de Pirassununga, altera dispositivo da Lei Complementar nº 75, de 28/12/2006, “para dispor sobre instalação elétrica, iluminação e telefônica subterrânea”.

Com efeito, a Lei Complementar n. 75, de 28 de dezembro de 2006, dispõe sore o parcelamento e o uso do solo, sendo que o art. 9º trata das obras e serviços a serem exigidos do loteador.

Por força do acréscimo decorrente da legislação guerreada, o loteador deverá executar nos loteamentos, sem ônus para a Prefeitura, a execução das redes elétrica, de iluminação e telefônica, de forma subterrânea.

Há, de fato, incompatibilidade da lei impugnada com os seguintes dispositivos da Constituição do Estado: art. 5º, art. 47, II, art. 144, art. 180, II, e art. 181, § 1º.

O ato normativo impugnado, fruto de iniciativa parlamentar, foi discutido e aprovado na Câmara Municipal, sem que tenha havido efetivo planejamento, bem como oportunidade para participação popular.

Não há dúvida alguma quanto à indispensabilidade de planejamento prévio e de participação popular, princípios que devem ser observados na edição de leis relacionadas ao zoneamento e ao uso do solo, nos termos dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista:

“(...)

Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal. (g.n.)

(...)”

As expressões colocadas em destaque nos dispositivos acima transcritos (diretrizes, desenvolvimento urbano, participação, entidades comunitárias, planos, programas, projetos, diretrizes, plano diretor, uso e ocupação do solo, proteção ambiental, totalidade do território municipal), não deixam qualquer dúvida de que: (a) é obrigatória a existência de Plano Diretor em todos os Municípios do Estado de São Paulo; (b) a ocupação e uso do solo devem ser realizados mediante planejamento prévio e com imprescindível participação popular; (c) esse planejamento e essa participação também são imprescindíveis no que diz respeito à ocupação e ao uso do solo com vistas à proteção ambiental; (d) o planejamento prévio e a participação popular, que devem estar presentes no processo de elaboração da legislação referente ao uso e ocupação do solo, inclusive com vistas à proteção ambiental, devem ser feitos de modo global, ou seja, contextualizado, levando em consideração todo o território do Município, advindo daí a exigência de que todos os Municípios tenham Plano Diretor.

Em síntese: planejamento prévio e participação popular, nos termos acima delineados, são imprescindíveis à legitimidade constitucional da legislação relacionada ao uso do solo.

Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no § 1º do art. 182 da Constituição da República. Também está assentada no art. 181, § 1º da Constituição Paulista, que exige que os planos diretores, obrigatórios em todos os Municípios, considerem a “totalidade de seu território municipal”.

Está nessa mesma ordem de ideias, por exemplo, o art. 182, caput, da CR/88, estabelecendo que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Oportuno recordar, ademais, que o inciso VIII do art. 30 da CR/88 prevê a competência dos Municípios, para promover o “adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo Plano Diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo também deve pautar-se em adequado planejamento, a ser feito de forma global, considerando todo o território do Município.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

O ato normativo que altera sensivelmente as condições, os limites e as possibilidades relativas ao uso e ocupação do solo do Município, sem realização de qualquer planejamento ou estudo específico, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria.

Entendimento diverso tornará sem valor algum todo o trabalho realizado previamente para fins de elaboração e aprovação da Lei do Plano Diretor.

Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 6. ed., 3. tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p. 393 e 395):

(...)

Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação. Mas não só o perímetro urbano exige planejamento, como também as áreas de expansão urbana e seus arredores, para que a cidade não venha a ser prejudicada no seu desenvolvimento e na sua funcionalidade pelos futuros núcleos urbanos que tendem a formar-se na periferia.

(...)

A elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população.

(...)”

Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, José Afonso da Silva (Direito Urbanístico, 4. ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 251), em lição que mutatis mutandis é aplicável à hipótese em exame, anota que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda que:

“(...)

recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça.

(...)”

No mesmo sentido o posicionamento de Toshio Mukai (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p. 29), bem como de José dos Santos Carvalho Filho (Comentários ao Estatuto da Cidade, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris Editora, 2006, p. 25/26.

Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo que, sem qualquer estudo prévio consistente – planejamento específico -, de forma casuística, e sem assegurar mínima participação popular, determina que toda a rede elétrica, de iluminação e de telefonia seja feita de forma subterrânea.

A necessidade de respeito à participação popular e ao planejamento específico relativamente à legislação que modifica o regime jurídico do uso do solo tem sido afirmada em julgados desse Colendo Órgão Especial. Confira-se:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação. (ADI 134.169-0/3-00, rel. des. Oliveira Santos, j. 19.12.2007, v.u.).

(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis n°s. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo – Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas. (ADI 163.559-0/0-00, rel. des. Maurício Ferreira Leite, j. 10.02.2008).

(...)”

No mesmo sentido: ADI 118.767-0/5-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.07.04.06; ADI 125.012-0/7-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.02.08.06; ADI 130.137-0/9-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 25.10.06; ADI 125.642-0/1-00, rel. des. Walter de Almeida Guilherme, j. 07.04.06.

Ademais, a matéria atinente à gestão da cidade decorre, essencialmente, da administração realizada pelo Chefe do Executivo, o que leva à conclusão de que, na hipótese em exame, foi violado o princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II, da Constituição Paulista, que reproduzem a diretriz contida no art. 2º da Constituição Federal).

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (cf. art. 1º e art. 18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto. Limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, vale afirmar, a Constituição Federal (cf. José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 459).

A autonomia do Município deve respeitar o princípio da separação dos Poderes, contando o art. 5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Bandeirante, que determina a incidência, com relação àqueles, dos princípios constitucionais estabelecidos.

Em outras palavras, pela natureza da matéria regulada e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo específico. E o planejamento na ocupação e uso do solo das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

Considerando que ao Poder Legislativo cabe legislar, e ao Poder Executivo cabe administrar, é lícito concluir que é inconstitucional o ato legislativo que invade a esfera da gestão administrativa - que envolve atos de planejamento, estabelecimento de diretrizes e a realização propriamente dita do que foi estabelecido na fase do planejamento (atos administrativos concretos) – por violar a regra da separação de Poderes.

No caso ora examinado, como a iniciativa legislativa partiu de Vereador, chega-se à conclusão de que o Legislativo Municipal violou a regra que exige independência e harmonia entre os Poderes, invadindo a esfera das atribuições do Executivo Municipal.

Vale, a propósito, colacionar precedentes desse Colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação da separação de Poderes, e por isso aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente. (TJSP, ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006).

(...)

Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada. (TJSP, ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005).

(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Complementar n° 294/05 do Município de Catanduva - Alteração de Zoneamento Urbano - Identificação de lotes que passam a ter característica comercial, em zona estritamente residencial – Inadmissibilidade - Vício de inconstitucionalidade, por motivo de vedada delegação de poder em matéria de reserva legal. Ação julgada procedente. (ADI 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.).

(...)”

Em síntese: (a) partiu de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição da lei impugnada; e (b) a lei interferiu no planejamento urbanístico e no uso do solo, que se enquadram no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo; (c) não houve planejamento prévio para aludida alteração bem como participação popular.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de acolhimento da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de março de 2011, de Pirassununga.

São Paulo, 30 de outubro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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