Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0139555-18.2012.8.26.0000/50000

Requerente: APAS – Associação Paulista de Supermercados

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Santos

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 762, de 12 abril de 2012, do Município de Santos. Disciplina Tempo de atendimento ao público nos caixas de supermercados e hipermercados. Inocorrência de reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo ou de invasão da reserva da Administração. Inexistência de ofensa aos princípios de isonomia, razoabilidade e proporcionalidade. improcedência da ação. A disciplina do comércio não é matéria da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. A limitação da incidência da lei local impugnada a supermercados e hipermercados com área construída maior a certa dimensão não é inconstitucional porque alcança os grandes conglomerados comerciais desse ramo, onde o tempo de atendimento nos caixas é superior àqueles estabelecimentos de menor porte. Sanções administrativas cominadas que não se mostram inadequadas na estipulação de multas escalonadas em razão da reincidência.  Constitucionalidade da norma.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei Complementar n. 762, de 12 abril de 2012, de iniciativa parlamentar, do Município de Santos, que dispõe sobre o tempo de atendimento ao público nos supermercados e hipermercados, sob alegação de violação à competência normativa estadual para disciplina das relações de consumo (art. 275, Constituição Estadual; art. 24, VIII, Constituição Federal), ofensa aos princípios de isonomia, razoabilidade, proporcionalidade e separação de poderes (fls. 02/23).

Concedida a liminar (fl. 86), a Câmara Municipal de Santos e a Prefeitura de Santos prestaram informações (fls. 94/98 e 102/108), defendendo a constitucionalidade de lei; contra a liminar, interpôs a Municipalidade agravo regimental (fls. 119/125), sendo que o Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou-lhe provimento (fls. 138/144).

É o relatório.

No mérito, não se constata violação ao princípio da separação de poderes em razão da origem parlamentar da lei local impugnada.

A reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo deve ser expressa e taxativa em obséquio ao princípio da separação dos poderes e à regra da iniciativa legislativa comum ou concorrente (arts. 2º e 61, caput e § 1º, Constituição Federal; arts. 5º e 24, § 2º, Constituição Estadual), não sendo presumida. Igualmente não se constata a existência de reserva da Administração contida no art. 47, II, XIV e XIX, da Constituição Estadual, porque a matéria não se amolda em qualquer dessas disposições que permitem, excepcionalmente, a emissão de atos normativos pelo Chefe do Poder Executivo sem interferência do Poder Legislativo.

As normas do processo legislativo federal são de observância simétrica para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“(...) a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

As reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

A lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.

A matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente, como se decidiu (STF, ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, 02-04-2007, DJe 15-08-2008; ADI-MC 724, Rel. Min. Celso de Mello, 07-05-1992, DJ 27-04-2001; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, DJ 17-11-2006).

As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente no art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal (reproduzido no art. 24, § 2º, da Constituição do Estado), e cuja leitura revela claramente que a lei não trata de nenhum dos assuntos arrolados.

Não há, no caso, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 2º da Constituição Federal, repetido no art. 5º da Constituição Estadual.

Inadmissível suscitar ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual.

A lei não cria encargos financeiros novos para sua execução pelo Poder Executivo, senão aos particulares.

Ademais, a discussão sobre a geração de despesa pública, sedimentada no argumento de ações estatais para fiscalização e execução da lei, extravasa o âmbito estreito do contencioso abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade pela introdução de matéria de fato e dependente de prova.

Se é impossível cogitar que do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas sem cobertura financeiro-orçamentária (relacionadas à hipotética criação de cargos públicos), pois, a atividade comercial já é precedentemente absorvida pela polícia administrativa preexistente, não é viável concluir que do citado art. 25 – que não reproduz o art. 63, I, da Constituição Federal – soa que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“Não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

É que, diferentemente do ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema Corte”, assinala José Maurício Conti ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff).

Também não é inconstitucional o art. 1º da Lei Complementar n. 762, de 12 de abril de 2012, por limitar a incidência do diploma legal a supermercados e hipermercados com área construída maior a certa dimensão. A meta da lei é alcançar os grandes conglomerados comerciais desse ramo exatamente porque neles o tempo de atendimento nos caixas é superior àqueles estabelecimentos de menor porte.

E, de outra parte, as sanções administrativas cominadas não se mostram absurdas, ilógicas, inadequadas ou irracionais, considerando que estabelecem multas de maneira escalonada em razão da reincidência.

A reiterada pronúncia de constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, de leis municipais que disciplinam o tempo de atendimento em agências de instituições bancárias, pronunciando sua constitucionalidade, implicaria a dispensa de idêntico tratamento para o tempo de atendimento ao público nos supermercados e hipermercados.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da improcedência desta ação direta.

 

          

                   São Paulo, 30 de novembro de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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