Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0144067-44.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Sete Barras

Objeto: art. 123, seus incisos e parágrafo único, e art. 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras

 

 

 

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade em face dos arts. 123, seus incisos e parágrafo único, e 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras.

2) Dispositivos que tipificam crimes de responsabilidade e infrações político-administrativas praticadas pelo Prefeito.

3) Alegação de ofensa ao princípio da reserva de lei.

4) Tema da alçada federal. Ofensa à regra da repartição constitucional de competências que dá suporte ao princípio federativo (arts. 1º e 18 da CF/88). Princípios de observância obrigatória pelos Estados e Municípios (arts. 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo).

5) Procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação proposta pela Prefeita Municipal de Sete Barras, que visa à declaração de inconstitucionalidade em face dos arts. 123, seus incisos e parágrafo único, e 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras.

Sustenta a autora que os dispositivos impugnados afrontam a Constituição Estadual, que exige lei especial para a definição dos crimes de responsabilidade cuja competência é privativa da União nos termos do art. 22, I, c.c. o art. 85, parágrafo único, da Constituição Federal.

Os dispositivos atacados tiveram a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 81).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade dos atos normativos impugnados (fls. 86/87).

É a síntese do que consta nos autos.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, §2º, da Constituição Estadual.

No mérito, o pedido declaratório de inconstitucionalidade deve ser julgado procedente.

Os dispositivos impugnados pela presente ação direta são, realmente, inconstitucionais, pois tipificam infrações político-administrativas e crimes de responsabilidade do Prefeito, invadindo competência legislativa da União, violando assim o princípio federativo, que se manifesta através da repartição das competências.

O art. 85 da Constituição Federal, após definir de forma genérica quais atos do Presidente da República que caracterizam crimes de responsabilidade, estabeleceu em seu parágrafo único que: Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

A Constituição Estadual por sua vez no art. 48 estabelece que:

“Art. 48 - São crimes de responsabilidade do Governador ou dos seus Secretários, quando por eles praticados, os atos como tais definidos na lei federal especial, que atentem contra a Constituição Federal ou a do Estado, especialmente contra:”

Não se discute, portanto, acerca da competência legislativa da União para a definição dos crimes de responsabilidade. Tal questão foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito à Súmula nº 722, com o seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento."  

Assim, há violação ao disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Cumpre recordar que um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Não pode o legislador municipal, a pretexto de legislar sobre assuntos de interesse local ou suplementar a legislação Federal ou Estadual de ordem geral, invadir a competência legislativa destes entes federativos superiores (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre União, Estados e Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que o art. 123, seus incisos e parágrafo único, e o art. 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras, violaram a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípio constitucional estabelecido.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto no art. 1º e no art. 144, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal que trate de matéria cuja competência é do legislador federal ou estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que os Municípios, ao editarem suas leis orgânicas deverão respeitar os “princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado”.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que a definição das infrações político-administrativas e a tipificação dos crimes de responsabilidade do Prefeito Municipal é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal.

A propósito, o professor Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito Constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 443).

Saliente-se que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça. É o caso do julgado relatado pelo Exmo Des. Mohamed Amaro (ADIN 106.343-0/8-00, Ilha Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se extrair o seguinte excerto:

“Os princípios básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o respectivo processo e julgamento, restando, pois, afastada qualquer previsão da lei orgânica municipal, regimento interno, ou resolução legislativa, diversa do estabelecido na legislação federal pertinente.

         Aos municípios, apenas cabe observar as normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi recepcionado pela nova ordem constitucional, como, expressamente, admitido pelo Supremo Tribunal Federal.

         O ESTABELECIMENTO DE NORMAS DE PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO, SIGNIFICANDO INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, POR FORÇA DO QUE DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I, AMBOS DA CARTA MAGNA.

         Precedentes jurisprudenciais”.

Não é outro o entendimento do E. STF, senão vejamos:

“A definição das condutas típicas configuradoras do crime de responsabilidade e o estabelecimento de regras que disciplinem o processo e julgamento das agentes políticos federais, estaduais ou municipais envolvidos são da competência legislativa privativa da União e devem ser tratados em lei nacional especial (art. 85 da CR).” (ADI 2.220, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 16-11-2011, Plenário, DJE de 7-12-2011.)

“Constituição estadual e tribunais de contas: conselheiros do tribunal de contas estadual – a questão das infrações político-administrativas e dos crimes de responsabilidade – competência legislativa para tipificá-los e para estabelecer o respectivo procedimento ritual (Súmula 722/STF). A Constituição estadual representa, no plano local, a expressão mais elevada do exercício concreto do poder de auto-organização deferido aos Estados-membros pela Lei Fundamental da República. Essa prerrogativa, contudo, não se reveste de caráter absoluto, pois se acha submetida, quanto ao seu exercício, a limitações jurídicas impostas pela própria Carta Federal (art. 25). O Estado-membro não dispõe de competência para instituir, mesmo em sua própria Constituição, cláusulas tipificadoras de crimes de responsabilidade, ainda mais se as normas estaduais definidoras de tais ilícitos tiverem por finalidade viabilizar a responsabilização política dos membros integrantes do Tribunal de Contas. A competência constitucional para legislar sobre crimes de responsabilidade (e, também, para definir-lhes a respectiva disciplina ritual) pertence, exclusivamente, à União Federal. Precedentes. Súmula 722/STF.” (ADI 4.190-MC-REF, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-3-2010, Plenário, DJE de 11-6-2010.)

No mesmo sentido: ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-2006, Plenário, DJ de 24-11-2006; ADI 2.235-MC, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 29-6-2000, Plenário, DJ de 7-5-2004; ADI 1.901, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 3-2-2003, Plenário, DJ de 9-5-2003; ADI 834, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-2-1999, Plenário, DJ de 9-4-1999.)

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Há leis federais que tratam da tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.

A Lei nº 1.079/50, recepcionada pela Constituição da República, define quais são as infrações e disciplina o processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

O Decreto-lei nº 201/67 define e regula o processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.

Destarte, ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas contidas na legislação municipal (Lei Orgânica) que discriminam as infrações político-administrativas e os crimes de responsabilidade.

Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 123, seus incisos e parágrafo único, e do art. 128, seus incisos e parágrafos, da Lei Orgânica do Município de Sete Barras.

São Paulo, 22 de agosto de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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