Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0210279-81.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: expressão “inclusive na especialidade de Ortodontia” contida no art. 4º, item 4.5, do anexo I, da Lei Municipal n. 7.484, de 15 de dezembro de 2010, do Município de Franca

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, em face da expressão “inclusive na especialidade de Ortodontia” contida no art. 4º, item 4.5, do anexo I, da Lei Municipal n. 7.484, de 15 de dezembro de 2010, do Município de Franca. Expressão impugnada que deriva de emenda parlamentar destinada a adicionar a especialidade “Ortodontia” ao atendimento odontológico a ser prestado pela conveniada APAE aos seus usuários. Alteração de regra de convênio não prevista no projeto original que configura usurpação das atribuições do Prefeito, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º da CE). Parecer pela procedência.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Franca, tendo por objeto a expressão “inclusive na especialidade de Ortodontia” que na realidade encontra-se no subitem 4.5 do item III do Anexo I da Lei Municipal de Franca n. 7.484, de 15 de dezembro de 2010 e não no art. 4º, item 4.5 do Anexo I da mencionada lei, como constou na petição inicial, como bem ressalvado pelo ilustre Desembargador Relator GONZAGA FRANCESCHIINI (fls. 83).

O autor noticia que, como Prefeito Municipal, encaminhou à Câmara de Vereadores local proposta autorizando o Poder Executivo a celebrar convênio com a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Franca, objetivando à prestação de serviços e assistência à saúde. Referido Projeto de Lei recebeu o nº 155/2010.

No entanto, esse projeto recebeu uma emenda aditiva, que acresceu ao subitem 4.5 do item III do Anexo I da Lei n. 7.484/2010, do Município de Franca a referida expressão ora impugnada, acrescentando a especialidade de ortodontia ao atendimento odontológico a ser prestado pela APAE de Franca para seus usuários.

Entende que a inclusão de um atendimento não previsto no convênio celebrado entre o Município de Franca e a APAE demonstra, claramente, que a Câmara Municipal de Franca exorbitou de sua competência e legitimação, usurpando a competência exclusiva da Chefe do Poder Executivo, infringindo, desta forma, o princípio da separação dos poderes.

Aponta como violados os arts. 5º, 47, II e 144, da Constituição Paulista.

  

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 83/84).

Contra referida decisão, o Presidente da Câmara Municipal interpôs agravo regimental (fls. 88/90), cujo provimento foi negado          (fls. 97/100).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma impugnada, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 115/116).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações em defesa da norma impugnada (fls.118/122).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei n. 7.484, de 15 de dezembro de 2010, do Município de Franca, autoriza o Poder Executivo a celebrar convênio com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Franca - APAE, objetivando a prestação de serviços e assistência à saúde, e dá outras providências.

Por emenda, o Legislativo local acrescentou através da expressão tida por inconstitucional a especialidade “Ortodontia” ao atendimento odontológico a ser prestado pela APAE aos seus usuários.

Ocorre, porém, que emenda parlamentar, sobre matéria cuja iniciativa é privativa do Poder Executivo, também se submete ao controle de constitucionalidade e também se sujeita à verificação da competência para deflagrar o processo legislativo.

Por isso, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram a iniciativa parlamentar, autora da emenda ao projeto, a expressão impugnada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A matéria de que trata a lei em análise – prestação de serviço público – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos parlamentares, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas a Suprema Corte o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

“Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º., II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do beneficio instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).

A limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

No caso dos autos, é curial que a emenda acarreta aumento de despesa e desfigura a proposta original do convênio que previa apenas o tratamento odontológico da conveniada APAE para seus usuários, desse modo, sofre a limitação atrás aludida. A especialidade Ortodontia acrescida ao convênio celebrado pela emenda aditiva traduz-se em ônus não previsto no projeto original e desfigura a proposta original, até mesmo porque a conveniada (APAE) não tem capacidade operacional de efetuar a prestação do serviço especializado de Ortodontia a seus usuários o que, por tal motivo, representa inequívoco abuso do poder de emendar, com a consequente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da expressão “inclusive na especialidade de Ortodontia” que se encontra no subitem 4.5 do item III, do Anexo I, da Lei n. 7.484, de 15 de dezembro de 2010, do Município de Franca.

São Paulo, 05 de julho de 2012.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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