Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0263119-68.2011.8.26.0000

Requerente: Sindicato do Comércio Varejista de Araraquara

Objeto: Lei Complementar n. 7.546, de 07 de outubro de 2011, do Município de Araraquara

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade. Direito Constitucional. Competência municipal. Princípio da isonomia. Princípio da razoabilidade. Ofensa.

2) Ato normativo que estabelece horário para abertura e fechamento do comércio em geral no Município de Araraquara.

3) Legislação em exame que não conferiu tratamento isonômico aos comerciantes da cidade, tampouco aderiu ao princípio da razoabilidade.

4) Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Sindicato do Comércio Varejista de Araraquara, tendo por objeto a Lei  n. 7.546, de 07 de outubro de 2011, do Município de Araraquara,  que “estabelece horário para abertura e fechamento do comércio em geral no Município de Araraquara e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi promulgado pelo Presidente da Câmara de Vereadores, uma vez que o Chefe do Poder Executivo não se manifestou no prazo que lhe é cominado pela Lei Orgânica do Município.

Alega afronta aos princípios da isonomia, proporcionalidade e razoabilidade ao estabelecer indevida discriminação entre os comerciantes.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, por força de decisão monocrática do Excelentíssimo Desembargador Relator, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 132/135). Referida decisão foi ratificada pelo Colendo Órgão Especial desse Egrégio Tribunal, no julgamento do agravo regimental que se seguiu à decisão monocrática (fls. 213/217).

O Excelentíssimo Prefeito Municipal prestou informações (fls. 165/166).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 162/163).

A Câmara Municipal de Araraquara prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 172/200)

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O pedido declaratório de inconstitucionalidade é procedente.

De início, cabe verificar se o Município de Araraquara poderia legislar sobre a matéria, ou seja, se detinha competência para determinar a abertura e o fechamento do comércio em determinados dias e limitar o horário.

A autonomia dos entes federativos importa na obediência às regras de competência traçadas na Constituição Federal. E, segundo o art. 30, I e II, desse texto fundamental, os municípios podem legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

O critério instituído pelo legislador constitucional foi o da predominância do interesse, pois conforme leciona Alexandre de Moraes, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral ao passo que aos Estados referem-se matérias de predominante interesse regional, e aos municípios concernem os assuntos de interesse local (Direito Constitucional, São Paulo,:Atlas, 2001, p. 276).

A legislação federal permite o trabalho aos domingos no comércio varejista em geral, uma vez observada a regra do art. 30, I, da Carta da República e as normas de Direito do Trabalho. Evidentemente - e baseado no princípio de distribuição de competências -, o Município não poderá legislar sobre matéria da União e esta não poderá legislar sobre assuntos do interesse local.

A partir dessas premissas, pode-se fazer a análise da constitucionalidade da lei combatida sob dois prismas.

Primeiro, nota-se que o município pode suplementar a legislação federal, desde que não invada o campo da competência normativa da União.

É lição de Alexandre de Moraes, para quem “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local” (Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743).

Todavia, considerando-se que o Município de Araraquara não só  proibiu, mas também restringiu o comércio varejista em determinados dias e horários a determinadas classes de comerciantes, convém anotar a ofensa ao princípio da igualdade e da razoabilidade.

Ainda que, para se argumentar, o escopo da legislação tenha sido o de garantir o descanso dos comerciantes e dos comerciários, a verdade é que outros comerciantes foram autorizados a prosseguir em suas atividades. Se o intuito da norma foi a proteção do trabalhador, não deveria ter excepcionado a regra geral.

Por isto é que a legislação em exame não conferiu tratamento isonômico aos comerciantes da cidade nem do Distrito de Bueno Andrada, tampouco aderiu ao princípio da razoabilidade, na medida em que restringiu o horário comercial.

Com efeito, as discriminações enunciadas pelo legislador municipal distanciaram-se do primado da isonomia inscrito na Constituição como um dos mais importantes princípios do Estado Democrático de Direito.

É até possível que a lei eleja um discrímen para tratar de maneira desigual os desiguais. Jamais, porém, poderá tratar desigualmente os iguais. E, no caso em exame, foi o que aconteceu. Não se detectou qualquer critério razoável que tivesse autorizado o legislador a fazer o que fez, ou seja, permitir que alguns comerciantes trabalhassem e proibir, ou ao menos dificultar, a atividade profissional de outros.      

Por outro lado, houve ofensa ao princípio da razoabilidade, que pressupõe a congruência lógica entre os motivos (pressupostos fáticos) e o ato emanado, tendo em vista a finalidade pública a cumprir. A razoabilidade é uma técnica assemelhada à proporcionalidade no controle e balanceamento material das leis, técnica esta que se destina à avaliação entre o instrumento concreto utilizado e o fim perseguido, ou seja, uma relação custo-benefício e a verificação da eficiência, bem assim relacionada aos cânones da coerência e da congruência. Em realidade, o princípio da razoabilidade é um critério utilizado pela jurisdição para aferir a concreção dos valores e princípios constitucionais do ato legislativo. É uma das “válvulas de segurança” do sistema jurídico a outorgar à jurisdição um poder de anular opções claramente arbitrárias, evidentemente injustas ou despropositadas.

De outra banda, outra técnica adotada em nossa Constituição é a da proporcionalidade que, em sentido lato (“Verhältnismäßigkeitprinzip”), implica um controle em três fases: (a) o primeiro é o da idoneidade, pela qual os meios empregados devem ser idôneos a perseguir o fim fixado pela lei; (b) o segundo é a necessidade, ou seja, a Administração, dentre várias escolhas idôneas a alcançar o fim perseguido, deve escolher o que gera menor sacrifício aos interesses em conflito, sendo que o juiz é chamado a verificar o terreno dos fatos; e (c) o terceiro, a proporcionalidade em sentido estrito que requer um balanceamento entre os interesses em jogo, ou seja, entre as vantagens de buscar o fim público em relação aos prejuízos causados aos interesses privados.

A lei em questão, dentro da ótica do interesse público, não subsiste ao confronto da terceira fase; em um balanceamento entre os interesses em jogo nota-se que o legislador municipal praticamente impediu o funcionamento do comércio a alguns lojistas em detrimento de outros, sem falar na restrição do horário comercial que não se justifica.

Há, assim, evidente também a ofensa aos artigos 111 e 144 da Constituição Paulista.

Posto isso, o parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 7.546, de 07 de outubro de 2011, do Município de Araraquara.

São Paulo, 26 de setembro de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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