Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0293519-65.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Itatinga

Objeto: inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.830, de 08 de novembro de 2011, de Itatinga

 

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1.830, de 08 de novembro de 2011, de Itatinga, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a inclusão da matéria ‘Educação Cívica e valores Humanos’ como atividade extracurricular, nas Escolas Públicas Municipais de Itatinga, e dá outras providências”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1.830, de 08 de novembro de 2011, de Itatinga, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a inclusão da matéria ‘Educação Cívica e valores Humanos’ como atividade extracurricular, nas Escolas Públicas Municipais de Itatinga, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa ao art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 41/42).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 55, 58/59)

A Presidência da Câmara Municipal deixou de prestar informações (fls. 60).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 1.830, de 08 de novembro de 2011, de Itatinga, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a inclusão da matéria ‘Educação Cívica e valores Humanos’ como atividade extracurricular, nas Escolas Públicas Municipais de Itatinga, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Dispõe sobre a inclusão, no projeto de atividades extracurriculares das Escolas Públicas Municipais de Itatinga, a matéria ‘Educação Cívica e Valores Humanos’.

Parágrafo único: A inclusão referida no caput deste artigo será realizada de acordo com o planejamento pedagógico das unidades de ensino municipais, sem prejuízo do conteúdo curricular das disciplinas obrigatórias, não acarretando em aumento de despesas previamente consignadas.

Art. 2º. O Poder Executivo regulamentará esta lei, no que couber, no prazo necessário visando à inclusão no próximo ano letivo.

Art. 3º. As despesas com a execução desta lei correrão por conta de verba orçamentária própria, suplementada se necessário.

Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, e sinaliza para a inclusão, como atividade extracurricular na rede municipal de ensino, da disciplina “Educação Cívica e Valores Humanos”.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir o conteúdo da atividade curricular ou extracurricular no âmbito do ensino municipal é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

A Constituição da República, como se sabe, estabelece competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV da CF/88), tendo sido assegurada aos Estados competência concorrente para legislar sobre educação, cultura e ensino (art. 24, IX, da CF/88), e aos Municípios a possibilidade de legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF/88).

Assim, com base nesse panorama constitucional do sistema de ensino brasileiro, foi editada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece aspectos fundamentais a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios nessa matéria, sendo editada também a Lei do Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001.

Ocorre que esses diplomas nacionais cuidam de aspectos gerais, havendo espaço para que os demais entes federativos além da União, ou seja, Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos no plano federal, incrementem os respectivos sistemas de ensino, inclusive na perspectiva curricular ou extracurricular, atendendo a peculiaridades regionais.

Nada obstante, não resta qualquer dúvida de que a definição da grade curricular, ou mesmo das atividades extracurriculares, é matéria que se insere no âmbito da gestão administrativa, sendo manifestamente estranha à atividade parlamentar.

Compete aos órgãos técnicos da área da educação que integram a Administração Pública, em cada uma das esferas federativas definirem os conteúdos programáticos do ensino, respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos na gestão administrativa da educação no plano nacional.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei sinalizando para a inclusão de novas disciplinas na atividade de ensino, essa atuação do legislador invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

“(...)

Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado.

Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca, j. 3.2.2011; ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.830, de 08 de novembro de 2011, de Itatinga.

São Paulo, 24 de julho de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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