Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0310311-94.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Mauá

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011, de Mauá

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011, de Mauá, que dispõe sobre “a introdução de psicólogos no quadro de profissionais de educação da rede municipal de ensino da cidade de Mauá”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Suzano, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011, de Mauá, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “a introdução de psicólogos no quadro de profissionais de educação da rede municipal de ensino da cidade de Mauá”.

Sustenta o autor a inconstitucionalidade da lei, visto que: (a) trata-se de matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo; (b) houve ofensa ao princípio da separação de poderes.

Alega-se, portanto, violação aos seguintes dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo: artigos 5º, 24, 25, 47, incisos IV, XI e XVII, 60, § 4, 144, 176, incisos I a V e § 1º.

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo (fls. 31/32).

Citado o Senhor Procurador-Geral do Estado, declinou da defesa do ato normativo (fls. 39, 42/43).

Não foram apresentadas informações da Câmara Municipal, em que pese tenham sido solicitadas (fls. 40 e 44).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011, de Mauá, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “a introdução de psicólogos no quadro de profissionais de educação da rede municipal de ensino da cidade de Mauá”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. As escolas da rede municipal de ensino da cidade de Mauá terão profissionais na área de psicologia em seus quadros profissionais para atendimento dos corpos docente e discente.

Art. 2º. A atuação do psicólogo estará voltada para o acompanhamento dos alunos na escola e em sua comunidade.

Art. 3º. Os psicólogos deverão estar presentes nas Unidades de Ensino permanentemente.

Art. 4º. A assistência psicológica prevista no caput deverá ser realizada em articulação pelos sistemas de educação e saúde, que disciplinarão em regulamento as condições de implementação.

Art. 5º. O profissional da área de psicologia realizará o atendimento a alunos e professores, em caráter individual ou coletivo, na própria escola.

Art. 6º. O Poder executivo poderá celebrar convênios e parcerias para viabilizar o implemento do presente dispositivo legal.

Art. 7º. A implementação da determinação contida no artigo 1º dar-se-á, gradualmente, no prazo máximo de um ano.

Art. 8º. As despesas decorrentes da execução da presente lei onerarão as verbas próprias do orçamento vigente.

Art. 9º. A lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

É manifesta a violação do princípio da separação de poderes, na hipótese em exame, tendo em vista que a lei analisada interfere diretamente no modo como deve ser administrado o sistema público municipal de ensino, ao determinar que haja nas escolas “profissionais na área de psicologia em seus quadros profissionais para atendimento dos corpos docente e discente” (art. 1º da Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011).

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental, ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008; dentre muitos.

Para um exemplo recente desse pacífico entendimento do Col. Órgão Especial confira-se a ementa da decisão proferida na ADI 0225250-71.2011.8.26.0000, rel. des. Corrêa Viana, j. 11 de abril de 2012:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 1.821/11, do Município de Itatinga. Proibição de corte do fornecimento de água e luz às sextas-feiras, sábados, domingos e feriados, determinando, ainda, a notificação do consumidor inadimplente 15 (quinze) dias antes da interrupção do serviço. Organização de serviço público de iniciativa legislativa exclusiva do Executivo. Ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes. Declaração de inconstitucionalidade do diploma normativo por ofensa aos artigos 5º, 47, II, e 144 da Carta Paulista. Pedido procedente.

(...)”

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.687, de 15 de setembro de 2011, de Mauá.

São Paulo, 02 de maio de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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