Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0315703-49.2012.8.26.0000 (990.10.315703-6)

Requerente: Prefeito Municipal de Pilar do Sul

Objeto: Inconstitucionalidade do § 9º do art.115 da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Art.115, § 9º, da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul, que assegura a incorporação de décimos de diferença entre a remuneração do cargo de que seja titular ou função para qual foi admitido e a do cargo ou função que venha a exercer o servidor público. 

2)      Irregularidade na representação processual. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório com poderes específicos.

3)      Vantagem pecuniária pessoal componente da remuneração. Matéria sujeita a iniciativa legislativa do Poder Executivo no que se refere aos seus servidores. Violação do art. 24, § 2º, I da Constituição Paulista.

4)      Inconstitucionalidade da expressão “a qualquer título” constante do mencionado dispositivo legal. A generalização ofende o princípio democrático, que rege o acesso aos cargos públicos, e o princípio da moralidade administrativa. Violação dos arts. 111, 115, II, 133 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Pilar do Sul tendo como alvo o § 9º do art.115 da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul que tem a seguinte redação:

“Art. 115 - ....

(...)

§ 9º - O servidor com mais de cinco anos de efetivo exercício, que tenha exercido ou venha a exercer, a qualquer título, cargo, ou função que lhe proporcione remuneração superior à do cargo de que seja titular, ou função para qual foi admitido, incorporará um décimo dessa diferença, por ano, até o limite de dez décimos, ficando assegurada ao servidor a imediata aplicação deste direito independentemente da edição de lei complementar.”

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade do transcrito ato normativo por violação ao princípio da separação dos poderes e por vício de iniciativa, sob o fundamento de que compete privativamente ao Executivo legislar sobre o aumento de remuneração de seus servidores. Afirma, ainda, inconstitucionalidade da expressão a qualquer título, por ofender o princípio democrático e ser suscetível de interpretações não condizentes com a Constituição Estadual, possibilitando a ocupação de cargo ou função pública independente de prévio concurso de ingresso ou acesso.

Aponta, assim, contrariedade aos arts. 24 § 2º, I, 111, 115, II, 133 e 144 da Constituição Estadual.

A liminar foi concedida suspendendo-se a eficácia do § 9º do art.115 da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul (fls. 41).

Citada regularmente (fls. 48) a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 90/91).

Notificada a fls. 42 e 93, a Câmara Municipal de Pilar do Sul prestou informações a fls. 50/60, sustentando a constitucionalidade do ato normativo impugnado.

É a síntese do ocorrido nos autos.

PRELIMINARMENTE

 

A petição inicial é subscrita apenas pelo procurador do município (fl. 24), com mandato outorgado pelo Prefeito Municipal (fl. 25).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Este Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

No caso dos autos, não a procuração do Prefeito Municipal é genérica para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade em face da Câmara Municipal, carecendo da especificação em relação ao ato normativo a ser impugnado.

Assim sendo, requeiro seja o autor intimado para regularização de sua representação processual ou subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

NO MÉRITO

O ato normativo ora impugnado viola a reserva de iniciativa legislativa do Executivo nos termos do art. 24, § 2º, I da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

Vantagem pecuniária ao servidor público, por compor a remuneração, só pode ser instituída por lei, cuja iniciativa deve observar os preceitos dos arts. 61, § 1º, II, a da Constituição Federal reproduzido no art. 24, § 2º, I da Constituição Paulista.

A Lei Orgânica dos Municípios não decorre do poder constituinte, mas sim de um poder constituído, mais especificamente da Câmara dos Vereadores. Logo, não tem natureza jurídica de Constituição, possuindo status de lei ordinária municipal.

Não se admite, portanto, que Lei Orgânica Municipal trate de matéria cuja reserva legislativa é do poder executivo.

A iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica é de competência exclusiva do Prefeito Municipal, nos termos do art. 24, § 2º, I da Constituição Paulista, que pela simetria determinada por seu art. 144 deve ser observado pelos Municípios.

O ato normativo impugnado disciplinou modalidade de vantagem pessoal ao prever a possibilidade de incorporação nos vencimentos de décimos de diferença entre a remuneração do cargo de que seja titular ou função para qual foi admitido e a do cargo ou função que venha a exercer o servidor público.

Vantagens pecuniárias pessoais compõe a remuneração. Neste sentido o magistério de Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 33ª ed. at., Malheiros, 2007, p. 477/478) ao consignar que: “o sistema remuneratório ou a remuneração em sentido amplo da Administração direta e indireta para os servidores da ativa compreende as seguintes modalidades: a) subsídio, constituído de parcela única e pertinente, como regra geral aos agentes políticos; b) remuneração, dividida em (b1) vencimentos, que corresponde ao vencimento (no singular, como está claro no art. 39, § 1º, da CF, quando fala em “fixação dos padrões de vencimento”) e às vantagens pessoais (que, como diz o mesmo art. 39, § 1º, são os demais componentes do sistema remuneratório do servidor público titular de cargo público na Administração direta, autárquica e fundacional).

O dispositivo normativo impugnado padece, portanto, de inconstitucionalidade formal, por tratar de matéria sujeita a iniciativa legislativa do Poder Executivo no que se refere aos seus servidores.

Não obstante, a semelhança de redação do ato normativo impugnado com o art. 133 da Constituição do Estado, importante ressaltar que esta tem natureza jurídica de poder constituinte derivado não estando sujeita à mesma limitação material aplicada a Lei Orgânica Municipal.

Na hipótese de superação da alegada inconstitucionalidade formal, o ato normativo padeceria ainda de inconstitucionalidade parcial em relação à expressão “a qualquer título”.

Em que pese o ato normativo atender a estabilidade financeira como decorrência do princípio da irredutibilidade de vencimentos, sua redação ampla e indistinta, revelada pela expressão “a qualquer título” aninha em seu raio de ação situações como o desvio de função, permitindo que um servidor público, mesmo que investido em um determinado cargo, possa amealhar remuneração de outro (isolado ou de diferente carreira), sem submissão ao prévio concurso público.

Por essa razão, a expressão “a qualquer título”, contida no dispositivo legal impugnado, ofende o inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo (que reproduz o art. 37, II, da Constituição Federal), aplicável aos Municípios por conta de seu art. 144, in verbis:

“Artigo 115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das seguintes normas:

(...)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissões, declarado em lei, de livre nomeação e exoneração”.

Neste sentido, dispositivo análogo da Constituição Paulista foi julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em venerando acórdão cuja ementa é adiante transcrita:

“CONCURSO PÚBLICO. RESSALVA. NOMEAÇÃO PARA CARGO EM COMISSÃO. DÉCIMOS DA DIFERENÇA ENTRE REMUNERAÇÃO DO CARGO DE QUE SEJA TITULAR O SERVIDOR E DO CARGO EM FUNÇÃO OCUPADO. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Constituição Federal prevê, em seu art. 37, II, in fine, a ressalva à possibilidade de ‘nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação’, como exceção à exigência de concurso público. Inconstitucional o permissivo constitucional estadual apenas na parte em que permite a incorporação ‘a qualquer título’ de décimos da diferença entre a remuneração do cargo de que seja titular e a do cargo ou função que venha a exercer. A generalização ofende o princípio democrático que rege o acesso aos cargos públicos. 2. Ao Supremo Tribunal Federal, como guardião maior da Constituição, incumbe declarar a inconstitucionalidade de lei, sempre que esta se verificar, ainda que ex officio, em razão do controle difuso, independente de pedido expresso da parte. 3. O Ministério Público atuou, no caso concreto. Não há vício de procedimento sustentado. 4. Embargos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e do Estado de São Paulo acolhidos em parte, para limitar a declaração de inconstitucionalidade dos art. 133 da Constituição e 19 do se ADCT, tão só, à expressão, ‘a qualquer título’, constante do primeiro dispositivo. Rejeitados, os do servidor, por não demonstrada a existência da alegada omissão e por seu manifesto propósito infringente” (STF, RE-ED 219.934-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 13-10-2004, v.u., DJ 26-11-2004, p. 06, RTJ 192/722, RT 835/151).

Tal como naquela sede, nesta merece prestígio, sob o pálio do art. 115, II, da Constituição do Estado de São Paulo, entendimento que reconheça a inconstitucionalidade da expressão “a qualquer título” contida no dispositivo legal impugnado.

Além disso, o preceito legal enfocado incentiva e estimula práticas administrativas, como o desvio de função, que não se compatibilizam com a ética e a probidade nas relações do poder público, favorecendo apaniguados na obtenção de remuneração maior a que fazem jus como expressão do regime jurídico de seus cargos, desde que escolhidos por critérios subjetivos por seus superiores para o exercício de função diversa do cargo público nos quais investidos.

Com a previsão de incorporação de fração da diferença de vencimentos, abre-se a oportunidade da instauração de relações distanciadas do interesse público, criando situações absolutamente imorais de favorecimento, abrigadas pela expressão “a qualquer título”. Em suma, proporciona o uso da necessidade do serviço público e dos recursos do erário para melhorias estipendiais oblíquas.

Por essa razão, denota-se a clara incompatibilidade e a manifesta violação da expressão “a qualquer título” contida no § 9º do art.115 da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul com o art. 111, caput, da Constituição do Estado de São Paulo (aplicável aos Municípios por força de seu art. 144 e reproduzindo o art. 37, caput, da Constituição Federal) que inscreve a moralidade como princípio constitucional da administração pública, in verbis:

“Artigo 111 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”. 

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do § 9º do art.115 da Lei Orgânica do Município de Pilar do Sul, por ofensa ao art. 24 § 2º, I da Constituição Estadual, ou se assim não se entender, deve ser dada procedência parcial ao pedido para reconhecer a inconstitucionalidade da expressão “a qualquer título” do referido dispositivo legal.

 

São Paulo, 14 de novembro de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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