Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 042129-06.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São Manuel

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei n. 843, de 01 de dezembro de 2010, do Município de São Manuel

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 843/10 do Município de São Manuel. Servidor público. Regime jurídico. Disciplina da licença-prêmio. Iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ação procedente. 1. Pertence exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa sobre o regime jurídico dos servidores públicos, assunto que abrange as condições de conversão do gozo de licença-prêmio em pecúnia.   2. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 4, e 25, da Constituição Estadual. 3. Parecer pela procedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

                   Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de São Manuel contestando a Lei n. 843, de 01 de dezembro de 2010, daquele Município, de iniciativa parlamentar, que alterou o parágrafo primeiro do art. 48, da Lei n. 2.180/96, possibilitando a conversão da Licença-Prêmio somente para pagamento de pecúnia quando requerida uma única parcela de 30 (trinta) dias de Licença-Prêmio para qualquer integrante do quadro de funcionários do Município, que se encontrem em efetivo exercício e na hipótese de se tornar inviável o gozo de Licença-Prêmio em virtude de exoneração “ex ofício”, aposentadoria por invalidez permanente ou falecimento, será paga ao ex-servidor ou aos seus  beneficiários, conforme o caso, indenização calculada com base no valor dos vencimentos do cargo ocupado.

                   Concedida liminar (fls. 16/19), a Câmara Municipal de São Manuel prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 23/25).

                 A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 34/35).

                   É o relatório.

                   A ação só merece conhecimento no tocante ao confronto com as normas da Constituição do Estado, e não com as da Lei Orgânica do Município, uma vez que o controle abstrato, concentrado, direto e objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, por via de ação direta, tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

                   Feito esse registro, a ação é procedente.

                   A norma instituída cuidou de assunto inerente ao regime jurídico dos servidores públicos, cuja iniciativa legislativa é reservada exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo consoante disposto no art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual – aplicável aos Municípios por obra de seu art. 144 – e que reflete o princípio da separação de poderes inscrito no art. 5º da Constituição do Estado.

                   Com efeito, assim dispõe o art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual – que reproduz o art. 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal:

“Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição:

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

4 – servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria”.

                   Por regime jurídico dos servidores públicos deve-se compreender o “conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes” (STF, ADI-MC 766-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 03-09-1992, v.u., RTJ 157/460). Nessa compreensão estão abrangidas as regras institutivas de direitos e obrigações e cuja “iniciativa é do Poder Executivo, conforme dispõe a alínea ‘c’ do inciso II do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal” (RTJ 194/848). Em dimensão mais global, assim se explica:

“Trata-se, em essência, de noção que, em virtude da extensão de sua abrangência conceitual, compreende todas as regras pertinentes (a) às formas de provimento; (b) às formas de nomeação; (c) à realização do concurso; (d) à posse; (e) ao exercício, inclusive as hipóteses de afastamento, de dispensa de ponto e de contagem de tempo de serviço; (f) às hipóteses de vacância; (g) à promoção e respectivos critérios, bem como avaliação do mérito e classificação final (cursos, títulos, interstícios mínimos); (h) aos direitos e às vantagens de ordem pecuniária; (i) às reposições salariais e aos vencimentos; (j) ao horário de trabalho e ao ponto, inclusive os regimes especiais de trabalho; (k) aos adicionais por tempo de serviço, gratificações, diárias, ajudas de custo, e acumulações remuneradas; (l) às férias, licenças em geral, estabilidade, disponibilidade, aposentadoria; (m) aos deveres e proibições; (n) às penalidades e sua aplicação; (o) ao processo administrativo” (STF, ADI-MC 766-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 03-09-1992, v.u., DJ 27-05-94, p. 13.186).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - POLICIAL MILITAR - REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS - PROCESSO LEGISLATIVO - INSTAURAÇÃO DEPENDENTE DE INICIATIVA CONSTITUCIONALMENTE RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO - DIPLOMA LEGISLATIVO ESTADUAL QUE RESULTOU DE INICIATIVA PARLAMENTAR - INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA . OS PRINCÍPIOS QUE REGEM O PROCESSO LEGISLATIVO IMPÕEM-SE À OBSERVÂNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS. - O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Carta da República, impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à observância incondicional dos Estados-membros. Precedentes. - O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, que resulte da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do ato legislativo eventualmente editado. Nem mesmo a ulterior aquiescência do Chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, tem o condão de sanar esse defeito jurídico radical. Insubsistência da Súmula nº 5/STF, motivada pela superveniente promulgação da Constituição Federal de 1988. Doutrina. Precedentes. SIGNIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL DO REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS (CIVIS E MILITARES). - A locução constitucional ‘regime jurídico dos servidores públicos’ corresponde ao conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes” (STF, ADI-MC 1.381-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 07-12-1995, v.u., DJ 06-06-2003, p. 29).

                   Com efeito, é assente no Supremo Tribunal Federal que a regra do art. 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal, reproduzida no art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual, é de observância obrigatória para Estados e Municípios, por força do princípio da simetria, bem como que a lei que dispõe sobre a situação funcional de servidores públicos, seus direitos e vantagens, é da iniciativa legislativa reservada privativamente ao Chefe do Poder Executivo.

                   Neste sentido, já se decidiu que:

“(...) 5. Tratando-se de criação de funções, cargos e empregos públicos ou de regime jurídico de servidores públicos impõe-se a iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo nos termos do art. 61, § 1º, II, da Constituição Federal, o que, evidentemente, não se dá com a Lei Orgânica” (RTJ 205/1041).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 54, VI DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ. VEDAÇÃO DA FIXAÇÃO DE LIMITE MÁXIMO DE IDADE PARA PRESTAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO. OFENSA AOS ARTIGOS 37, I E 61, § 1º, II, C E F, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Dentre as regras básicas do processo legislativo federal, de observância compulsória pelos Estados, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes, encontram-se as previstas nas alíneas a e c do art. 61, § 1º, II da CF, que determinam a iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo na elaboração de leis que disponham sobre o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos civis e militares. Precedentes: ADI 774, rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 26.02.99, ADI 2.115, rel. Min. Ilmar Galvão e ADI 700, rel. Min. Maurício Corrêa (...)” (RTJ 203/89).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJe 06-09-2007).

“PROJETO - INICIATIVA - SERVIDOR PÚBLICO - DIREITOS E OBRIGAÇÕES. A iniciativa é do Poder Executivo, conforme dispõe a alínea ‘c’ do inciso II do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - SERVIDOR DO ESTADO - EMENDA - AUMENTO DE DESPESA. Resultando da emenda apresentada e aprovada aumento de despesa, tem-se a inconstitucionalidade, consoante a regra do inciso I do artigo 63 da Constituição Federal. PROJETO - COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO - EMENDA - POSSIBILIDADE. Se de um lado é possível haver emenda em projeto de iniciativa do Executivo, indispensável é que não se altere, na essência, o que proposto, devendo o ato emanado da Casa Legislativa guardar pertinência com o objetivo visado. PROJETO - COMPETÊNCIA DO EXECUTIVO - EMENDA - PRESERVAÇÃO DE DIREITO ADQUIRIDO. Emenda a projeto do Executivo que importe na ressalva de direito já adquirido segundo a legislação modificada não infringe o texto da Constituição Federal assegurador da iniciativa exclusiva. LICENÇA-PRÊMIO - TRANSFORMAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER EM OBRIGAÇÃO DE DAR - ALTERAÇÃO NORMATIVA - VEDAÇÃO - OBSERVÂNCIA.

Afigura-se constitucional diploma que, a um só tempo, veda a transformação da licença-prêmio em pecúnia e assegura a situação jurídica daqueles que já tenham atendido ao fator temporal, havendo sido integrado no patrimônio o direito adquirido ao benefício de acordo com as normas alteradas pela nova regência” (RTJ 194/848).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 109, de 08 de abril de 1994, do Estado de Rondônia. (...) - No mérito, já se firmou o entendimento desta Corte no sentido de que, também em face da atual Constituição, as normas básicas da Carta Magna Federal sobre processo legislativo, como as referentes às hipóteses de iniciativa reservada, devem ser observadas pelos Estados-membros. Assim, não partindo a lei estadual ora atacada da iniciativa do Governador, e dizendo ela respeito a regime jurídico dos servidores públicos civis, foi ofendido o artigo 61, § 1º, II, ‘c’, da Carta Magna. Ação direta que se julga procedente, para declarar-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 109, de 08 de abril de 1994, do Estado de Rondônia” (STF, ADI 1.201-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 14-11-2002, v.u., DJ 19-12-2002, p. 69).

                   Por outro lado, a inconstitucionalidade também se manifesta pela ofensa do art. 25 da Constituição Estadual, pois a norma implica de per si aumento de despesa pública e está desassociada da indicação dos recursos disponíveis, próprios para atendimento dos novos encargos gerados.

                  Opino pela procedência da ação por violação aos arts. 5º, 24, § 2º, 4 e 25, da Constituição Estadual.

                   São Paulo, 22 de maio de 2012.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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