AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo n.º 0285353-44.2011.8.26.0000

Autor: Município de São Manuel

Objeto de impugnação: Lei Municipal n.º 864, de 5 de janeiro de 2011, de São Manuel.

 

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n.º 864/2011, de São Manuel, que vedou a inclusão de garagem edificada no cálculo do IPTU. Instituição e cobrança de tributo em desacordo com o arquétipo constitucional. Renúncia da autonomia financeira. Iniciativa que, demais, se revela incompatível com a razoabilidade. Violação expressa dos arts. 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Procedência da ação.

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

         Cuida-se de ação na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade da lei em epígrafe, de origem parlamentar, que mandou desconsiderar do cálculo do IPTU a área edificada de garagem.

         A lei objeto de impugnação nestes autos assim dispõe:

 

LEI N.º 864, DE 05 DE JANEIRO DE 2011.

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO MANUEL

ESTADO DE SÃO PAULO -

(Projeto de Lei n.º 077/2010 – Autoria Vereador Pedro Norival Cicarelli)

“Acrescenta parágrafo único ao artigo 167 da Lei Municipal Complementar n.º 159, de 13 de dezembro de 2002”.

Pedro Norival Cicarelli, Presidente da Câmara Municipal de São Manuel, Estado de São Paulo, faz saber que a Câmara aprovou e eu promulgo a seguinte Lei:

Art.1º O artigo 167 da Lei Complementar nº 159/2002 fica acrescidade parágrafo único com a seguinte redação:

“Art.167. -.....................................................

I..........................................

II.........................................

III.........................................

IV........................................

Parágrafo único: A garagem edificada não será incluída para efeito de cálculo do IPTU.”

Art. 2º As despesas decorrentes da presente lei correrão por conta do orçamento vigente.

Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

São Manuel, 05 de janeiro de 2011.

Pedro Norival Cicarelli

Presidente

 

         Segundo consta da inicial, ao excluir a garagem edificada da base de cálculo do IPTU, a referida lei violou os arts. 156, inciso I, e 182, § 4.º, da Constituição Federal, em combinação com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo e com os arts. 32 e 33 do Código Tributário Nacional.   

         Não houve pedido expresso de liminar.

         Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da norma acoimada de inconstitucional, ausente, porém, neste caso, em que a lei impugnada versa sobre matéria exclusivamente local.

         Notificada, a Câmara Municipal de São Manuel prestou informações no prazo legalmente previsto, aduzindo, em contraposição ao pedido, que: o projeto de que resultou a lei ora impugnada teve tramitação regular; em matéria tributária a iniciativa é geral ou concorrente; os dispositivos adotados como parâmetros de controle de constitucionalidade, na presente ação, não foram vulnerados; aliás, tais dispositivos não impedem inclusões ou exclusões da alíquota de IPTU; a lei em epígrafe não é incompatível com a independência e harmonia entre os Poderes.

                            Em resumo, é o que consta nos autos.

         Preliminarmente, a legitimidade para a propositura de ADI é do Prefeito, consoante o disposto no art. 90, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, e não do Município de São Manuel, que não pode figurar no polo ativo da presente ação, alvitrando-se, por isso, a emenda da inicial.

         Ainda em preliminar, a inicial é inepta, porquanto nela foi estabelecido o confronto da lei municipal com disposições da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, e apenas indiretamente se faz menção à suposta contrariedade da Constituição Estadual, devendo, também por esse motivo, ser emendada a inicial.

         No mérito, a ação deve ser julgada procedente, nem tanto pelos fundamentos expostos na inicial, mas pelas razões adiante expostas, lembrando que nas ações desta natureza a causa de pedir é aberta, o que equivale a dizer que o Tribunal pode declarar a inconstitucionalidade da lei por outro fundamento não expressamente contido na inicial.

         Pois bem, a lei editada é flagrantemente inconstitucional, visto que, ao ressalvar da cobrança do IPTU a garagem edificada, desconsiderou que o aludido tributo incide sobre as áreas edificadas, independentemente de sua destinação, e a ressalva legalmente prevista não segue o arquétipo constitucional, que foi reproduzido na legislação de regência (CTN).

         Ocorre, porém, que a Constituição Estadual em nenhuma de suas passagens alude ao IPTU, tributo de competência municipal, e, por isso, a desconformidade entre a lei impugnada e o modelo constitucionalmente previsto não tem relevância em ação direta de inconstitucionalidade proposta com fundamento no art. 125, § 2.º, da Constituição Federal.

         Há, porém, um argumento sobre o qual silenciou a inicial e que, prima facie, autorizaria o processamento desta ação.

         Deveras, a instituição e a cobrança de um tributo são meros corolários da autonomia financeira de que foram dotados os Municípios, por força do disposto no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, donde se conclui que, ao vedar a inclusão de área correspondente à garagem edificada no cálculo do IPTU, sem que exista alguma razão de índole lógica ou jurídica que justifique tal iniciativa, o Município de São Manuel renunciou na prática a uma parcela de sua autonomia financeira, com o que saiu violada a referida disposição constitucional estadual.

         Nunca é demais lembrar que os poderes outorgados pela Constituição são irrenunciáveis, o que significa dizer que a lei não pode pura e simplesmente dispor de parcela significativa do mais importante tributo municipal, máxime considerando-se que os recursos advindos de sua arrecadação são destinados a fazer frente às múltiplas despesas públicas municipais.

         É evidente que, no exercício de sua competência tributária, os Municípios podem dispor de parcela de suas receitas tributárias, o que geralmente faz por meio de isenções, remissões, anistias, etc., mas não lhe é dado, porém, desvirtuar a natureza do tributo, tal como fez a lei ora impugnada, que mandou desconsiderar a área correspondente à garagem edificada do cálculo do IPTU, a despeito de este tratar-se de tributo que tem por hipótese de incidência a propriedade, o domínio útil ou a passe de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município (CTN, art. 32),e cuja base de cálculo é o valor venal do imóvel, que, evidentemente, é apurado a partir da área total construída, a par de outros elementos.

         Demais, a lei ora impugnada desconsidera que toda desoneração do pagamento de um tributo deve fundar-se no atendimento do interesse público, mas, na espécie, torna-se impossível identificar o que pretendeu o legislador municipal com tão esdrúxula iniciativa.

         É bem certo que o Brasil ostenta uma das maiores cargas tributárias do mundo, mas mesmo essa constatação não justifica a iniciativa de renunciar a parcela significativa da receita tributária municipal sem que haja alguma razão juridicamente relevante para tanto.

         Nessa ordem de ideias, cumpre obtemperar que a lei em exame também é incompatível com o princípio da razoabilidade, que pressupõe a adequação entre meios e fins, ausente, porém, neste caso, em que a iniciativa verberada não persegue uma finalidade albergada pelo direito.

         Assim, com todas as vênias, opina-se pela integral procedência da presente ação.

                                               São Paulo, 9 de fevereiro de 2012.

                            Sérgio Turra Sobrane

                       Subprocurador-Geral de Justiça

                                   Jurídico

krcy