Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0013521-61.2013.8.26.0000

Requerente: Associação dos Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo – APMDFESP

Requeridos: Governador do Estado de São Paulo e Secretário Estadual de Segurança Pública

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Resolução SSP - 05, de 07 de janeiro de 2013, que estabelece parâmetros aos policias que atendam ocorrências de lesões corporais graves, homicídios, tentativas de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro com resultado morte e fixa diretrizes para a elaboração de registros policiais, boletins de ocorrência, notícias de crime e inquéritos policiais decorrentes de intervenção policial.

2)     Preliminares. Necessidade de citação do Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual.  Ilegitimidade ativa ad causam. Parte legítima para a ação direta de inconstitucionalidade é a entidade que represente a integralidade da categoria econômica ou profissional e não apenas parcela setorizada. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.

3)     Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

4)     Mérito. A instituição de protocolo para o atendimento e registro de determinadas ocorrências por policiais, com previsão de direcionamento da prestação de socorro a órgãos específicos, encontra-se no âmbito do poder discricionário relativo à gestão do funcionamento dos serviços públicos, e informada pelos princípios da razoabilidade, finalidade, interesse público e legalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Resolução nº 05, de 07 de janeiro de 2013, da Secretaria Estadual de Segurança Pública que estabelece parâmetros aos policiais que atendam ocorrências de lesões corporais graves, homicídios, tentativas de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro com resultado morte e fixa diretrizes para a elaboração de registros policiais, boletins de ocorrência, notícias de crime e inquéritos policiais decorrentes de intervenção policial.

Sustenta a requerente que a resolução apresenta inconstitucionalidade formal e material porque viola o dever constitucional atribuídos à Polícia Militar relativo à preservação da incolumidade das pessoas, contrapõe-se à obrigação legal e dever funcional dos policiais militares da prestação de socorro, estando em descompasso com os deveres éticos da Polícia Militar estampados em seu regulamento disciplinar. Daí a afirmação de ofensa aos arts. 5º e 144 da Constituição Federal, aos arts 111, 139, 140 e 142, da Constituição Estadual, bem como aos arts. 13, § 2º, 29, § 2º, do Código Penal, e ao art. 8º, XXXV, da Lei Complementar Estadual nº 893/2001. 

Regularmente notificado, o Senhor Secretário Estadual de Segurança Pública apresentou informações a fls. 110/133, levantando preliminares de ilegitimidade ativa e impossibilidade de utilização da via do controle abstrato de constitucionalidade para apreciar conflito que se passa no plano da legalidade. No mérito, sustentou a validade do ato normativo impugnado.

O Governador do Estado apresentou informações a fls. 184/185, reiterando os termos das informações prestadas pelo Secretário Estadual de Segurança Pública.

O pedido de liminar foi indeferido (fl. 217).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   PRELIMINARMENTE

a.   Necessidade da citação do Procurador-Geral do Estado

Necessária a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, para defender o ato impugnado.

b.   Da Ilegitimidade ativa ad causum

Nos termos do art. 90, V, da Constituição Estadual:

“Art. 90 - São partes legítimas para propor ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estaduais ou municipais, contestados em face desta Constituição ou por omissão de medida necessária para tornar efetiva norma ou princípio desta Constituição, no âmbito de seu interesse:

(...)

V - as entidades sindicais ou de classe, de atuação estadual ou municipal, demonstrando seu interesse jurídico no caso;’’

A legitimação das entidades de classe para a deflagração do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade tem suscitado muitas discussões, sobretudo no que se refere à caracterização do que seja entidade de âmbito, nacional, estadual e municipal, a noção de classe e a composição das entidades.

Para a hipótese dos autos, importante destacar que a autora, Associação dos Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo (APMDFESP), congrega, segundo seu estatuto, como associado natural os policiais militares portadores de deficiência, conforme modernos parâmetros médico-científicos (art. 4º, IV), e como associado contribuinte, o policial militar do serviço ativo, reformado ou da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e pensionistas que solicitarem sua admissão no quadro social (art. 4º, V).

O estatuto, ainda, prevê dentre os objetivos principais da associação a defesa da categoria dos Policiais Militares Portadores de Deficiência, bem como a defesa dos direitos e condições de trabalho dos integrantes da Política Militar do Estado de São Paulo (art. 2º, III).

Visando assegurar a representatividade adequada, o Supremo Tribunal Federal exige que a entidade postulante represente a integralidade da categoria econômica ou profissional em questão e não apenas uma parcela setorizada.

No caso dos autos, está evidente que a autora, não obstante possibilidade de congregar como associado contribuinte todos os policiais militares, foi concebida e atua de forma primordial na defesa dos policiais portadores de deficiência.

Assim, não se pode aceitar e conformar com a adequada representatividade a autora, sabendo-se de inúmeras outras entidades de classe de maior abrangência que atuam na defesa dos policiais militares, tais como: Associação Desportiva da Política Militar, Associação dos Oficiais da Polícia Militar, Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, Associação dos Sargentos e Subtenentes da Polícia Militar.

De outro lado, a autora não comprovou, de maneira satisfatória, o seu interesse jurídico no caso, haja vista que se constitui em grande parte por associados reformados ou na reserva em razão da deficiência, não sendo atingidos pelo ato normativo.

Desta forma, o processo deve ser extinto sem resolução do mérito por ser a autora parte ativa ilegítima para deflagrar o controle concentrado e abstrato da constitucionalidade.

2.   MÉRITO

a.   Da alegação de violação a Lei Complementar Estadual nº 883/2001, ao Código Penal e a dispositivos da Constituição Federal

Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Complementar Estadual nº 883/2001, do Código Penal e da Constituição Federal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

b.   Da alegação de inconstitucionalidade

O ato normativo impugnado, consistente na Resolução nº 05, de 07 de janeiro de 2013, do Secretário Estadual de Segurança Pública do Estado de São Paulo, tem a seguinte redação:

“Artigo 1º. Nas ocorrências policiais relativas a lesões corporais graves, homicídio, tentativa de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro com resultado morte, inclusive as decorrentes de intervenção policial, os policiais que primeiro atenderem a ocorrência, deverão:

I – acionar, imediatamente, a equipe do resgate, SAMU ou serviço local de emergência, para o pronto e imediato socorro;

II – comunicar, de pronto, ao COPOM ou CEPOL, conforme o caso;

III – preservar o local até a chegada da perícia, isolando-o e zelando para que nada seja alterado, em especial, cadáver (es) e objeto (s) relacionados ao fato; ressalvada a intervenção da equipe do resgate, SAMU ou serviço local de emergência, por ocasião do socorro às vítimas.

Parágrafo único. Caberá ao COPOM dar ciência imediata da ocorrência ao CEPOL, a quem incumbirá acionar, imediatamente, a Superintendência da Polícia Técnico-Científica para a realização de perícia no local.

Artigo 2º. A Superintendência da Polícia Técnico-Científica tomando conhecimento, por qualquer meio, dos crimes mencionados no artigo 1º desta resolução, deslocará, imediatamente, equipe especializada para o local, a qual aguardará a presença da Autoridade Policial ou a requisição desta para o início dos trabalhos.

Artigo 3º. Quando da elaboração de registros policiais, boletins de ocorrência, notícias de crime e inquéritos policiais, as Autoridades Policiais deverão abster-se da utilização das designações “auto de resistência”, “resistência seguida de morte” e expressões assemelhadas, que deverão ser substituídas, dependendo do caso, por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”.

Parágrafo único. As pessoas envolvidas nas ocorrências que trata essa resolução deverão ser, imediatamente, apresentadas na unidade policial civil com atribuições investigativas; salvo aquelas que se encontrarem na hipótese do inciso I do artigo 1º desta resolução.

Artigo 4º. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário.”

Verifica-se da exposição de motivos que a resolução, além de atender a recomendação inserta na Resolução nº 8, de 21 de dezembro de 2012, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, buscou priorizar a colheita da prova produzida na fase inquisitorial para o esclarecimento dos fatos e apuração da autoria e materialidade; possibilitar apuração isenta e escorreita de eventuais crimes contra a pessoa ou que atinjam o patrimônio, com evento morte; valorizar a preservação adequada do local em que tenha ocorrido morte ou lesão corporal, inclusive a decorrente de intervenção policial, para apuração efetiva do acontecido; possibilitar prestação de socorro adequado através de órgãos que possuem capacitação técnica e protocolo de atendimento de ocorrências com indícios de crime.

O ato normativo impugnado foi editado e encontra-se no âmbito das atribuições do Secretário de Estado referentes a auxiliar o Governador na direção superior da Administração Estadual (art. 47, II da Constituição Estadual).

Cabe ao Governo do Estado, através da Secretaria de Segurança Pública, o exercício das atribuições constitucionais relativas à manutenção da ordem e da segurança pública.

As Polícias Civil e Militar são órgãos estaduais de segurança pública subordinados ao Secretário de Segurança Pública, que, como agente político, detentor de parcela do poder estatal para a gestão de sua pasta, é protagonista das políticas públicas de segurança pública, exercendo atribuição de direção superior da Administração

A disciplina da atuação operacional e burocrática das polícias no atendimento e registro de ocorrências policiais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Logo, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.

Assim, não se identifica nenhum vício formal no ato normativo impugnado, pois editado por autoridade competente e nos limites de suas atribuições legais.

As medidas de atuação dos policiais civis e militares nas ocorrências indicadas e disciplinadas no ato normativo impugnado atendem ao dever constitucional de proporcionar aos cidadãos segurança pública, sobretudo no que se refere à preservação da incolumidade das pessoas.

Do confronto normativo abstrato da resolução com os arts. 139, 140 e 141, da Constituição Estadual, não se pode afirmar que restou sacrificado o dever legal do Estado em garantir e preservar a incolumidade das pessoas.

Não se pode confundir o transporte com a prestação de socorro propriamente dita. O transporte é mero meio para a atividade médica do socorro.

Os policiais civis e militares não foram impedidos de prestar socorro, mas apenas de proceder ao transporte dos feridos para o socorro.

No local do crime, se for o caso, os policiais militares, valendo-se de seus conhecimentos, adotarão as medidas adequadas referentes aos primeiros socorros.

A Administração Estadual, dentro de seu poder discricionário de organização e funcionamento de seus serviços públicos, optou, pelos motivos já assinalados, vedar que policiais civis ou militares procedam em ocorrências específicas a condução de eventuais feridos para o socorro especializado.

Tal medida não se confunde com a nefasta omissão de socorro, haja vista que o policial está obrigado a acionar imediatamente órgãos mais habilitados para o imediato socorro, como o resgate, que é atividade atribuída em muitos municípios ao Corpo de Bombeiros, a SAMU ou serviço local de emergência, que, dotados de qualificação técnica e com protocolos de atendimento, tem possibilidade de oferecer um atendimento mais adequado e eficaz, seja no local como no transporte.

Importante ressaltar que tal prática, adotada nas ocorrências de trânsito com vítimas, tem demonstrado tratar de intervenção adequada e eficaz na tutela da saúde dos feridos, reduzindo significativamente as hipóteses de agravamento das lesões e da permanência em leitos hospitalares.

Não há também qualquer incompatibilidade do ato normativo impugnado com os princípios estabelecidos no art. 111 da Constituição Estadual, que devem nortear a Administração Pública e a atividade legislativa.

As diretrizes de condutas traçadas na resolução impugnada estão informadas pelos princípios da finalidade, do interesse público, da razoabilidade e da eficácia.

A razoabilidade pressupõe a congruência lógica entre os motivos (pressupostos fáticos) e o ato emanado, tendo em vista a finalidade pública a cumprir. O protocolo de atuação disciplinado no ato normativo é razoável haja vista que adequado, considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar. Além disso, atende ao interesse público seja na apuração dos crimes dos quais resultou vítimas, seja na garantia da incolumidade das pessoas que receberão a prestação de um socorro imediato.

As medidas atendem a necessidade da administração da Segurança Pública em proporcionar condições de isenta e eficaz colheita de provas, bem como da adequada prestação de socorro às vítimas.

De outro lado, a adoção de protocolo semelhante para as vítimas de acidente de trânsito já demonstrou a adequação e a eficácia da medida.

As medidas disciplinadas no ato normativo impugnado, ao contrário de levantar suspeita sobre a polícia civil ou militar, visam a valorização e a comprovação da lisura de sua atuação.

Diante do exposto, na hipótese de superação das preliminares, aguarda-se que seja o pedido julgado improcedente.

 

São Paulo, 12 de junho de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

 

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