Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0019417-85.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Ribeirão Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.920, de 30 de novembro de 2012, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “DISPÕE SOBRE A INVERSÃO DAS FASES E QUANTO À PUBLICIDADE DAS LICITAÇÕES PÚBLICAS REALIZADAS NO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO.”

2)     Lei que versa sobre normas gerais de licitação, que está na esfera de competência do legislador federal (art. 22, XXVII, da CR). Repartição de competências como manifestação do princípio federativo. Princípio constitucional estabelecido. Contrariedade ao art. 144, da Constituição do Estado.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 12.920, de 30 de novembro de 2012, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “DISPÕE SOBRE A INVERSÃO DAS FASES E QUANTO À PUBLICIDADE DAS LICITAÇÕES PÚBLICAS REALIZADAS NO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO.”

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes, por conter vício de iniciativa e por ausência de competência legislativa do Município para tratar de matéria relativa às normas gerais de licitação. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts.  5º, 25, 37, 47, II, III, XIV e 144, da Constituição Estadual.

A liminar foi concedida (fls. 32/33).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações, em defesa da norma impugnada (fls. 48/50).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 44/46).

É o relato do essencial.

Procede o pedido.

A Lei nº 12.920, de 30 de novembro de 2012, do Município de Ribeirão Preto, tem a seguinte redação:

“Artigo 1º - As licitações no âmbito do Município de Ribeirão Preto sujeitar-se-ão à legislação federal e às normas específicas desta lei.

§ 1º - Subordinam-se ao regime desta lei os órgãos da administração municipal direta, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta e ou indiretamente pelo Município.

§ 2º - Aplica-se o procedimento especial da presente legislação também para a Câmara Municipal de Ribeirão Preto.

Artigo 2º - A licitação será processada e julgada, observadas as seguintes etapas consecutivas:

I - realização de sessão pública em dia, hora e local designados para recebimento dos envelopes contendo as propostas e os documentos relativos à habilitação, bem como da declaração dando ciência de que o licitante cumpre plenamente os requisitos de habilitação;

II - abertura dos envelopes contendo as propostas dos concorrentes;

III - verificação da conformidade e compatibilidade de cada proposta com os requisitos e as especificações do edital ou convite e, conforme o caso, com os preços correntes no mercado ou os fixados pela Administração ou pelo órgão oficial competente ou, ainda, com os preços constantes do sistema de registro de preços, quando houver, promovendo-se a desclassificação das propostas desconformes ou incompatíveis;

IV - julgamento e classificação das propostas, de acordo com os critérios de avaliação do ato convocatório;

V - devolução dos envelopes fechados aos concorrentes desclassificados, com a respectiva documentação de habilitação, desde que não tenha havido recurso ou após a sua denegação;

VI - abertura dos envelopes e apreciação da documentação relativa à habilitação do concorrente cuja proposta tenha sido a classificada como primeira colocada na fase de propostas;

VII - deliberação da Comissão de Licitação sobre a habilitação da primeira colocada da fase de propostas;

VIII - se a oferta não for aceitável ou se o licitante desatender às exigências habilitatórias, a Comissão examinará as ofertas subsequentes e a qualificação dos licitantes, na ordem de classificação, e assim sucessivamente, até a apuração de uma que atenda ao edital, sendo o respectivo licitante declarado vencedor;

IX - deliberação final da autoridade competente quanto à homologação do procedimento licitatório e adjudicação do objeto da licitação ao licitante vencedor, no prazo de até 10 (dez) dias úteis após o julgamento.

§ 1º - As licitações do tipo melhor técnica e técnica e preço terão início com a abertura das propostas técnicas, as quais serão analisadas e julgadas pela Comissão de Licitação.

§ 2º - A autoridade competente poderá, por decisão fundamentada, determinar que o processamento da licitação obedeça a ordem prevista na legislação federal.

§ 3º - Todos os documentos e propostas serão rubricados pelos licitantes presentes e pela Comissão.

§ 4º - É facultado à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, promover diligência destinada a esclarecer ou complementar a instrução do processo licitatório, vedada a criação de exigência não prevista no edital.

§ 5º - Para os efeitos do disposto no inciso VI deste artigo, admitir-se-á o saneamento de falhas, desde que, a critério da Comissão de Licitação, os elementos faltantes possam ser apresentados no prazo máximo de 3 (três) dias, sob pena de inabilitação do licitante e aplicação da multa prevista no edital.

§ 6º - Os erros materiais irrelevantes serão objeto de saneamento, mediante ato motivado da Comissão de Licitação.

§ 7º - É vedada a participação de uma única pessoa como representante de mais de um licitante.

§ 8º - O disposto neste artigo aplica-se à concorrência e, no que couber, às demais modalidades de licitação.

§ 9º - Não cabe desistência de proposta durante o processo licitatório, salvo por motivo justo decorrente de fato superveniente e aceito pela Comissão ou pelo pregoeiro.

§ 10º - Ultrapassada a fase de habilitação dos concorrentes e abertas as propostas, não cabe desclassificá-los por motivo relacionado com a habilitação, salvo em razão de fatos supervenientes ou só conhecidos após o julgamento.

§ 11º - Poderá a autoridade competente, até a assinatura do contrato, excluir o licitante ou o adjudicatário, por despacho motivado, se, após a fase de habilitação, tiver ciência de fato ou circunstância, anterior ou posterior ao julgamento da licitação, que revele inidoneidade ou falta de capacidade técnica ou financeira.

§ 12º - O licitante que ensejar o retardamento do certame, não mantiver a proposta ou fizer declaração falsa, inclusive aquela prevista no inciso I deste artigo, garantido o direito prévio de citação e ampla defesa, ficará impedido de licitar e contratar com a Administração, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.

§ 13º - As licitações processadas por meio de sistema eletrônico observarão procedimento próprio quanto ao recebimento de documentação e propostas, sessões de apreciação e julgamento e arquivamento dos documentos.

Artigo 3º - As formas e prazos de publicidade de atos convocatórios são aqueles a seguir definidos:

I - editais de concorrência serão publicados, ao menos uma vez, no Diário Oficial do Município e em jornal de grande circulação local, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias entre a primeira publicação e a data para recebimento de documentação e propostas ou para recebimento dos trabalhos;

II - editais de tomada de preços serão publicados, por uma vez, no Diário Oficial do Município, observando-se o prazo mínimo de 15 (quinze) dias entre a publicação e a data de recebimento de documentação e propostas;

III - instrumentos convocatórios de convite serão encaminhados diretamente a, pelo menos, 3 (três) potenciais interessados, cadastrados ou não, com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis entre a data de entrega e a designada para recebimento de propostas;

§ 1º - As publicações serão feitas resumidamente, contendo os dados essenciais à identificação do certame, por modalidade e número de registro; do órgão licitante; objeto licitado; data, hora e local designados para o recebimento de documentos e propostas, e endereço e telefone do local onde os interessados poderão obter a íntegra do edital e esclarecimentos suplementares.

§ 2º - Os atos convocatórios, sem distinção de modalidade, serão sempre disponibilizados para consulta nas repartições e divulgados seus extratos pela Internet.

§ 3º - Publicar-se-á no mesmo prazo fixado nos incisos deste artigo, o edital ou carta-convite em sítio oficial do órgão que promova o certame, de modo que seja possibilitado o acesso gratuito do inteiro teor do instrumento convocatório por meio de mídia eletrônica.

§ 4º - Deverá o órgão promotor do certame, observar os pra-zos estabelecidos nas legislações federais quando o mesmo for superior ao estabelecido neste artigo.

§ 5º - Também poderão ser utilizadas as modalidades de licitação que possam ser processadas por meio eletrônico, observada a legislação federal pertinente.

Artigo 4º - As modificações no edital exigem divulgação pela mesma forma dada ao texto original, reabrindo-se o prazo inicialmente estabelecido.

§ 1º - Quando a alteração não afetar de forma substancial a formulação da proposta, o prazo de divulgação poderá ser reaberto pela metade, por deliberação da Comissão de Licitação.

§ 2º - Quando a mudança não implicar alterações ou reformulação da proposta, ou o cumprimento de novas exigências, não haverá necessidade de reabertura de prazo.

Artigo 5º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

Verifica-se a existência de vício material, na medida em que a lei trata de questão que está na esfera da competência do legislador federal.

Observe-se que as fases do procedimento licitatório é matéria afeta às normas gerais de licitação, já prevista minuciosamente na Lei Federal n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e suas alterações posteriores.

Legislar a respeito de normas gerais de licitação é da competência privativa do legislador federal, nos termos do art. 22, XXVII, da Constituição Federal.

Note-se: não se trata de invocar parâmetro contido na Constituição da República para fins de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal. A impugnada lei viola o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a lei municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da Constituição Federal prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...)

 Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...) (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

(...)”

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 12.920, de 30 de novembro de 2012, do Município de Ribeirão Preto.

São Paulo, 11 de junho de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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